Davide Pinheiro

O meu coração só tem uma cor: a música e o futebol. Tenho sido um afortunado que faz da paixão profissão e vive daquilo que gosta da forma em que acredita mas o futebol pára-me os ponteiros. À noite, quando acabo o trabalho passo horas a jogar FM – a métrica do Steam não mente: 526 horas, ou seja duas semanas e meia não gastas em filas para a 25 de Abril; ao fim-de-semana, o futebol é o melhor que a vida de bairro tem. O pretexto para reunir amigos à mesa do café. Sabe a churrasco mas de copo na mão. Venho de uma família onde o alfa dominante é a esquerda intelectual com ascendente operário.

Na minha infância, o futebol era de tal forma reprovado que acabou por se tornar um fruto proibido. Não me deixavam ver jogos na televisão e sempre que havia um intervalo na sala para conferir o andamento do jantar lá ia a correr mudar de canal da 1 para a 2. Como era muito tímido, foi uma forma de me integrar com os meus colegas da primária. Comecei a prestar atenção ao jogo no Itália ’90 mas a primeira equipa a conquistar-me foi o Barcelona do Cruijff, vencedor da última Taça dos Campeões Europeus em Wembley com um pontapé-torpedo do Ronald Koeman de livre. Fiquei sempre adepto pelo estilo poético de jogo, o romantismo, a exigência dos culés e a organização do clube. Quando visitei a cidade pela primeira vez em 2008, percebi que era cultural. Para mim, o Guardiola e o Gaudi têm a mesma visão modernista e encantatória. Só não jogaram no mesmo relvado – o Barcelona é conhecido pela arte e o futebol também tem a sua arquitectura.

Parece impossível mas a última vez que joguei futebol foi há cinco anos. A convite da Bwin, fui a Madrid com uns amigos para um Portugal-Espanha em jornalistas. Como não éramos suficientes, recebemos um reforço castelhano. O avançado do Castilla jogou como nosso guarda-redes. Nunca tinha estado num balneário nem vivido o ritual pré-jogo. Parecia um sonho: o equipamento, o quadro táctico, a palestra (simulada) e os ecrãs com imagens do relvado. O túnel para o campo parecia a entrada para uma catedral. O adversário vestido de branco como a noiva e o árbitro de preto como o padre. Não havia adeptos mas o silêncio num estádio com aquela imponência era ensurdecedor. Nunca tinha traído até àquele dia. Se estão a pensar no mesmo, acertaram. Dormi com o inimigo e joguei no Bernabéu sem contar o fascínio. Deve ser castigo: nunca mais convocado.


Jornalista, criou o blog Mesa de Mistura, que rapidamente se tornou um espaço de referência a nível musical. É programador no Copenhagen Bar Lisboa, além de actuar regularmente como DJ.

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