Foi há muitos anos, mais de 30. Estávamos na Boavista, naquela avenida que nunca mais acaba. O meu tio passeava-nos na rotunda a pé e fomos andando – nem eu me lembro que dia especial seria aquele para eu estar no Porto e ter deixado a aldeia. Nesse dia, o meu tio levou-nos a visitar a campa de Pavão no cemitério de Agramonte. O meu tio boavisteiro, aquele que deixou de visitar um dos filhos recém-nascido para não perder um jogo no Bessa, estendia-me a mão e abria-me caminho para ver de perto a campa de Pavão. Eu ainda não sabia quem era (quem tinha sido o jogador), mas senti o peso do silêncio quando o meu tio me disse brevemente o que tinha acontecido – e talvez esta seja uma das primeiras sensações de tristeza e respeito que mantenho desse tempo de criança. Do tempo em que o futebol tinha nomes majestosos como Pavão.
Pavão – soube-o mais tarde, morrera em campo depois de um passe banal, mas foi ao minuto 13 da 13.ª jornada. É coisa para dar força à superstição. Dizem as notícias que o Porto ganhou por 2-0 ao Vitória de Setúbal mas no fim do jogo, já com a notícia da morte do jogador, ninguém ousou festejar. Havia lamento em vez de festa. Foi há muito tempo, eu soube da história anos depois, e agora, estranhamente, volto a ela.
Vim ler sobre Pavão e voltei a essa sensação de quase dor quando me apercebo que o jogador tinha muitos planos para o futuro: falava-se da possibilidade de ir jogar para o Manchester United, coisa que lhe devia tirar o sono à noite e encher de vida o dia.
Pavão caiu em campo. Foi levado para o hospital onde morreria e o jogo continuou. Só a vida dele terminava assim, sem tempo para concretizar sonho algum. Só o sono longo da morte.
Pela mão do meu tio Celso apercebi-me pela primeira vez dessa inevitabilidade, ou dessa fragilidade que é a vida. Nem eu nessa altura conhecia tais palavras que apenas adornam a sensação de desconforto e do medo da morte. Era muito nova, só ainda capaz de sentir o medo e até algo semelhante ao vazio. (À medida que crescemos e não importando a soma de factos vividos, o vazio instala-se e vai-se adensando em nós. Até recearmos um dia ser apenas vazio).
Lembro-me de uma amiga me ter dito que eu era a única pessoa que ela conhecia “sem planos para o futuro”. Inconscientemente, talvez tenha sido Pavão e aquela tarde em Agramonte que me tiraram a vontade de fazer planos e viver tudo no dia-a-dia.
Como costumo dizer, na dúvida o melhor é viver. E o resto logo se vê.
Começou na rádio há 25 anos, quando entrou para a TSF. Actualmente faz emissão diária na Radar, com destaque para o programa Fala com Ela.
Vou usar esta crónica num teste sobre o Auto da Barca do Inferno! Muito bom!
Muito bom…pela alma, pela história, enfim pela vida…