Prof. Neca

Começo a minha carreira de jogador no Gil Vicente, em 1966, como juvenil. Até hoje, não parei um ano. É o ano do primeiro Campeonato do Mundo de Portugal e no qual Eusébio brilha bem lá no alto. Isso para mim tornou-se uma referência importante. Passados 30 anos tive a felicidade de estar na equipa técnica do Benfica com o Eusébio. Foi de um facto um mito, um jogador fantástico e uma criatura de outro Mundo. Com o Eusébio vivi muitas histórias mas há uma que me marcou.
Em 1995 fomos com o Benfica fazer um estágio à África do Sul, que se tinha libertado do Apartheid no ano anterior e ainda estava tudo muito cru. E num dos acordos lá feitos foi-nos pedido, a jogadores e treinadores, que fossemos ao Soweto fazer uma demonstração técnica a uma organização de miúdos. Naquela altura ninguém lá entrava. O Soweto foi criado pelo Apartheid e eram um bocado os marginais de Joanesburgo. Então fomos lá ter com aqueles miúdos desfavorecidos e o Eusébio também ia na comitiva. E claro que íamos com seguranças para que não houvessem problemas. Às tantas, fui abordado por um indivíduo com trinta e poucos anos. Disse-me que era moçambicano e vivia no Soweto há dez anos.
– Aqui todos os dias há montes de violações, pessoas assassinadas, isto é uma tragédia tremenda. E tenho um sonho na minha vida, que era um dia poder cumprimentar o senhor Eusébio. Acha que tenho essa possibilidade?
Respondi-lhe que sim, que o Eusébio até faria questão de o cumprimentar por ser uma pessoa fantástica.
– Epá, não me diga isso!
Chamei o Eusébio.
– Ó King, está aqui um conterrâneo seu que o quer cumprimentar.
O homem ficou nas nuvens. Lá cumprimentou o Eusébio e agradeceu-me muito.
– Nunca pensei que isto fosse possível. A partir de hoje vou deixar de ter medo aqui no Soweto. Cumpri o meu maior sonho, falei com o Eusébio. A partir de agora a vida já não tem importância para mim.
O que os ídolos dos estádios representam para as pessoas… Às vezes nós não damos tanta importância por trabalharmos com os deuses do desporto, mas este episódio foi incrível. O Eusébio tinha de facto uma simpatia tremenda. Ele também sabia muito, o gajo era um sacaninha dos bons.
No Campeonato do Mundo de 2002, eu fazia parte da equipa técnica e o Eusébio tinha um prestígio na Ásia que não passa pela cabeça das pessoas. Isto por causa de 1966 e daquele jogo mítico com a Coreia do Norte. As histórias passam de geração em geração. Vi isso nas Maldivas, no Kuwait, na Arábia Saudita, na Índia, toda a gente conhecia o Eusébio. E na Ásia muitas vezes ele ia fazer os comentários dos jogos com o Pelé. O António Oliveira também tinha piada.
– Ó Eusébio, diga-me lá: quem é aquele negrinho que está ao seu lado a comentar na televisão?
Ele achava muita piada a isso.
E o Eusébio tinha um medo terrível de andar de avião. Nunca vi um homem andar tanto de avião e ter tanto medo. Numa altura qualquer, ele vai para um desses jogos e eu vou com ele. Íamos sair do hotel ao fim da manhã, por volta da uma da tarde, para ver o Coreia-Estados Unidos, ele para fazer os comentários e eu para fazer a observação do jogo para a selecção. O Eusébio era insuportável quando ia para um aeroporto. Ficava em pânico, transpirava e tínhamos de ter cuidado na maneira como o abordávamos. Ele ficava bravo, muito bravo.
Então estávamos à porta do hotel e como nesse dia não almoçámos com a equipa eu fui ao buffet do hotel.
– Então, Eusébio, já almoçou?
Ele deitava-se sempre muito tarde e quanto mais tarde acordasse melhor.
– Não, só tomei o pequeno-almoço.
E eu disse-lhe que tinha ido almoçar ao buffet, isto enquanto esperávamos pelo chauffeur para nos levar ao aeroporto. Ele estava muito tenso. E disse-lhe:
– Comi pouco, mas nem me caiu bem o almoço. Comi assim umas costeletinhas de cabrito.
O Eusébio começa-se a rir.
E eu a pensar: “há aqui qualquer coisa que não bate certo”.
– Ó prof., você comeu foi cão!
– Epá, não me diga! Agora é que eu estou aqui com o estômago que parece que o cão está a dar saltos!
Eu não sabia, mas lá o cão é um petisco para eles. Mas nunca tinha visto o Eusébio rir daquela maneira quando estava à espera de ir para o avião. A partir desse dia, quando via o Eusébio assim mais tenso dizia-lhe:
– E aquele cão que eu comi a pensar que era cabrito?
E ele fartava-se de rir. Era uma criatura fantástica, de quem toda a gente gostava muito.
Também passei um episódio com o Mourinho que reflecte um bocadinho o que é a vida. Na vida é preciso um bocadinho de sorte. Em 2000, ele vem do Barcelona para o Benfica e depois estava para ir para o Sporting. Nós falávamos bem e eu nessa altura estava no Imortal de Albufeira. Era um projecto válido, bem sustentado, com o presidente Fernando Barata, estavam também o bibota de ouro Fernando Gomes, o Alexandre Pinto da Costa e o José Veiga, que era o Jorge Mendes da altura. O Mourinho é um campeão… Isto passou-se depois de ele sair do Benfica. Como ele estava livre, pedi-lhe para me fazer o relatório de dois jogos. Assim foi, ele teve a humildade de os fazer. E eu, ao ler os relatórios, estava a ver o jogo. Completamente a ver o jogo. Esses dois relatórios ajudaram-me muito a projectar aquilo que foi a minha observação para o Mundial da Coreia e do Japão. Ainda hoje os guardo. Era brilhante e elucidativa a forma como ele via o jogo. O Mourinho já nessa altura estava à frente. E ele estava a passar uma fase triste por não estar a trabalhar, acontece a toda a gente, e disse-me:
– Ó prof., eu só queria fazer um contrato para acabar de pagar a casa que comprei em Setúbal.
O que é a vida… Hoje o Mourinho, pela sua competência, pode comprar casas onde quiser. Hoje, além de uma casa, até tem uma rua em Setúbal. As voltas que a vida dá.


Leva 38 anos como treinador. Além das muitas experiências em Portugal, treinou em Angola, Canadá, Maldivas, Koweit, Moçambique, Arábia Saudita, Índia e Israel. Facebooktwitterlinkedinmail

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2 comentários sobre “Prof. Neca

  1. Prof.Neca troquei umas palavras consigo no estádio nacional no meio daquilo que o futebol ainda consegue fazer que é trazer famílias e amigos a um espaço de convívio e de festa, que se não é único no mundo. Não sei se ainda faz parte do equipa técnica do D.das Aves,gostava de o ver no jamor.

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