Pedro Nascimento

Em 1999 o mundo viu um italiano franzino, com testa à Santana Lopes, óculos grossos e cara de Pinóquio, subir ao palco de uma cerimónia de entrega dos Oscars de Hollywood, para aceitar duas estatuetas em reconhecimento de uma obra de (sétima) arte chamada “A Vida é Bela”. O primeiro discurso de Roberto Benigni foi, em si mesmo, o argumento de um filme (cómico), e o segundo foi ainda mais extraordinário, sobretudo no momento em que o realizador/ator/génio puxa da sua natural humildade para dizer “É um erro! É um erro! Usei todo o inglês que sabia e agora não tenho mais!”. Uma fatalidade. Benigni ser uma estrela, seria uma fatalidade.
Retive parte dos discursos de Benigni na cabeça durante uns tempos. Bom… agora que olho para o que estou a escrever, ainda retenho. Talvez seja uma fatalidade, minha, reter na memória frases que me inspiram, pessoas que me inspiram. Profissionalmente tenho sido o sacana mais sortudo que conheço, pois tenho andado rodeado de gente com quem aprendi praticamente tudo o que sei. Até com dois ou três filhos da p… hum… dois ou três rapazes menos dados aos escrúpulos me consigo orgulhar de ter aprendido, com eles, aquilo que devia fazer, mas sobretudo o que não fazer.
A minha fatalidade talvez fosse mesmo esta de narrar eventos desportivos. Não me lembro de querer ser outra coisa na vida durante toda a minha vida, muito embora tenha desejado ser outras coisas na vida: quis ser Mick Jagger, Nelson Piquet, Keith Haring e Don Johnson, tudo em simultâneo ou em separado, já para não dizer que aquele golo do Éder a 10 de julho de 2016 era eu que marcava. Infelizmente, uma lesão crónica no talento impediu-me de exibir as minhas habilidades futebolísticas ao mundo. Mas isto, eu sempre quis: fazer o relato. Era miúdo – e atenção que eu fui miúdo até bastante tarde, praí desde os onze anos até sensivelmente esta tarde, que ainda não acabou – e as melhores tardes de sempre eram com o pano verde de inabalável veludo do Subbuteo esticado na alcatifa, os meus três grandes amigos de infância e onze jogadores de cada lado impecavelmente identificados por dísticos pintados a caneta de cor, dentro de caricas resgatadas à sorte do café do senhor Manel. Houve torneios épicos, vitórias épicas, também houve discussões épicas se era falta ou não. Escândalo. O International Board negligenciou anos a fio a modernização de regras no futebol-carica e o mais parecido com um vídeo-árbitro que alguma vez existiu foi naquele dia em que o primo de um dos meus amigos veio passar a tarde com ele e ficou a ver-nos jogar. Mas houve golos com relatos épicos.
Fatalmente, acabei a fazer isto na vida. Uma fatalidade, um erro como o de Benigni, porque me pagam para fazer uma coisa que, digamos, eu faria de borla. Peço que não contem isto a ninguém, porque o dinheiro faz-me falta e os custos de manutenção daquela offshore em Antigua e Barbuda ainda são caros.
Como qualquer comentador de sofá que se preze, o dia em que me estreei foi o maior choque frontal possível com a realidade. Em casa, tudo aquilo é mais fácil, só se dizem coisas certas, já fomos capazes de prever todas as situações e sabíamos perfeitamente que aquilo tudo se ia passar. Lá, fechado naquele cubículo mal iluminado, a luz vermelha que indica que o microfone está no ar até fere a vista, só saem soluços, medimos o comprimento a cada uma das 43 palavras que vamos utilizar na mais mal formulada frase de todos os tempos, e a primeira emissão em direto fica para a história como tendo sido um embuste tão grande quanto o tradutor de linguagem gestual filmado durante o funeral de Nelson Mandela.
Ora, nem de propósito: Nelson Mandela. A dada altura, já eu gostava mais de fazer narração desportiva do que das cólicas que entrar em direto me provocavam, aceitei com naturalidade um convite para narrar um evento especial – um jogo de comemoração, beneficência, homenagem, com franqueza já nem me lembro bem de que jogo se tratava, mas era qualquer coisa que reverenciava a figura de Nelson Mandela, o maior símbolo desportivo do continente africano a nunca se ter destacado pelo desporto. Mentira? Foi um homem excepcional, pela história, por tudo o que fez e representou, mais do que por ter dado origem a um filme romantizado sobre um acontecimento desportivo que, no fundo, é unicamente ofuscado por Mandela e sua grandeza. O desafio era uma coisa do género “os escolhidos de Mandela” contra o resto do mundo, onze contra onze e mil-e-duzentos suplentes de cada lado. Fácil. Aparentemente fácil. Bom, se calhar podia dar algum trabalho, é importante preparar toda e qualquer emissão que se faça. Se calhar ia ser difícil. Bolas, uma dor de cabeça! Todo o desenrolar diacrónico de pressentimentos sobre o que podia correr mal numa emissão, desta vez correu mesmo.
Nota à parte: acho sempre que vai correr tudo mal. Lembro-me que uma vez fiz um Suíça-Turquia para o Euro-2008 – foi a única vez que cheguei atrasado a uma emissão – e sentia-me tão plenamente preparado para ele, que acordei no sofá, já estavam a tocar os hinos nacionais, meti-me no carro e cheguei ao estúdio a Paço de Arcos com três minutos de jogo. Sentia-me tão bem preparado, que quase foi a pior emissão de todos os tempos.
Nas horas prévias ao jogo “Mandela vs Resto do Mundo”, nem sinal de notícias sobre o mesmo. Os jornais portugueses nem se deram ao trabalho de o anunciar, a internet ainda era movida a 64k e não tinha nada que se parecesse com informações sobre o jogo, e nem um telefonema para França conseguiu ajudar: “também não temos informações, assim que soubermos alguma coisa enviamos por fax”, responderam do lado de lá. Ok, vamos aguardar. E aguardámos, claro, aguardámos até que a emissão começou e nem equipas, nem convidados, nem treinadores, nem nada. Uns de branco, outros de preto, e eu perdido. Reconheci o Karembeu, era impossível não reconhecer tão frondosa trunfa, e o Samuel Eto’o, que andava a passear uma braçadeira de capitão. E de repente, dez minutos de jogo, equipas nada. Não chegou nada. Reconheci o Claude Le Roy e o Roy Hodgson, estavam os dois a treinar a equipa que supus ser a do “resto do mundo”, porque tinha o Zubizarreta na baliza e o Zamorano no ataque. Do outro lado era quase impossível reconhecer alguém convenientemente, e não sei se por esta altura não será importante lembrar que, no ano da graça de 2007, que não teve graça nenhuma, a televisão em HD era uma mera suposição e, naquele estúdio, os narradores comentavam com base numa televisão de cinescópio daquelas que a avózinha tem em cima do frigorífico para ouvir a novela (na verdade, não vê nada da novela, apenas ouve). Estava eu entretido no maior desfile de banalidades de todos os tempos, algures entre a organização tática de uma equipa a fingir e o facto do jogo ser (achava eu) em Joanesburgo, porque algures dizia “Joanesburgo” num cartaz, aparece o Rabah Madjer. Ah!, Madjer, esse calcanhar! Foram os melhores dez minutos de narração, o calcanhar de Viena, a importância de Madjer no futebol do FC Porto, o peso dos grandes jogadores estrangeiros em Portugal e outras coisas que tais. Na realidade, não sei se foram dez minutos ou apenas dois, mas pelo menos, nesse momento, sabia o que estava a dizer. Achava eu.
Resta dizer que foram duas partes de 45 minutos, como é normal no futebol (pelo menos aí não havia dúvidas…), aproximadamente 173 substituições (houve jogadores que saíram e entraram três vezes, assim me pareceu) e, se bem me lembro, três golos para cada lado. Não me pergunte quem marcou, porque eu ainda hoje tenho pesadelos. Já duvidava do que os meus olhos viam, achava que tinha visto o Pelé, mas não podia jurar. A certa altura vi um egípcio a marcar um golo, estive quase a soltar a língua para dizer que era o Abdelghani, que jogou no Beira Mar, só que tinha desfeito a barba, mas felizmente arrependi-me a tempo e nunca cheguei a dizer o disparate completo. Lembrei-me várias vezes do que disse o meu primeiro chefe de redação: não sabes, não inventes; quem sabe o que está a ver perdoa-te o silêncio, mas não te perdoa o chico-espertismo e a bacorada. Mas a composição estava, de facto, desgovernada, a locomotiva ia lançada e nem sinal onde ativar o freio: era um desastre à espera de acontecer. Resta dizer que a constituição das equipas nunca chegou, nunca sequer tive a confirmação de quem estava ou deixava de estar naquele campo, mas devia estar a ser uma festa bestial, porque as bancadas estavam cheias.
O melhor (“pior”, é o que devia estar ali escrito, como compreenderá) estava reservado para o final. Minuto 90: caramba, isto não pode piorar! A tormenta está a acabar! Eis que, junto à linha, se inicia um burburinho porque se estava a preparar uma substituição. Alguém se preparava para jogar um ou dois minutos, nos descontos. Quem? Pois o realizador foi lá abaixo buscar a imagem. Um rapaz franzino, tão franzino que não parecia atleta; estava de costas, via-se a camisola branca e um nome escrito nas costas: “Mandela”. Que horror, Mandela vai entrar em campo! Mas não pode ser, este rapaz tem 14 ou 15 anos e o Madiba já devia ter quase 90! E agora? Está claramente a ser um momento importante na emissão, porque estão todos a festejar, sorrisos por todos os lados, palmas, abraços, é claramente um rapaz importante, conhecido de toda a gente… mas quem PORRA é o rapaz? Neto de Mandela? Sobrinho de Mandela? Enteado do jardineiro de Mandela? Na camisola diz “Mandela”, sei lá quem raio é o rapaz, só sei que tem uma camisola onde está escrito “Mandela”!! Todos os restantes 21 jogadores em campo fizeram uma espécie de corredor da amizade para que o rapaz conseguisse levar a bola até à baliza e marcasse, mas nem isso ele conseguiu fazer. Era tão desastrado como eu! E o jogo acabou, nunca cheguei a saber quem era o Mandela da camisola 12 nem por que raio estavam a gostar tanto dele, mas senti-me aliviado. Preocupado, mas aliviado. De certeza que nunca mais ia ser chamado para fazer narração desportiva em mais lado nenhum do mundo, mas pelo menos estava aliviado porque cheguei ao final daquele trabalho sem ter um acometimento apoplético. Sobrevivi.
De lá para cá já tive oportunidade de narrar grandes eventos desportivos, uns com mais informação disponível que outros, mas nunca mais passei pelo mesmo filme de terror daquele dia. Gostava de acreditar que isso aconteceu porque eu nunca mais parti para um trabalho sem me preparar prévia e convenientemente, mas na verdade não sei. Pode ser apenas sorte. Deve ser apenas sorte. Confio plenamente na sorte e que ela vai evitar que mais algum dia, na minha carreira, eu tenha que dizer a frase: “e agora vai entrar… Mandela!”.


Comentador na SportTV e chefe de redação na AutoDrive, pertenceu à primeira formação dos Ministars e tem uma banda de rock, os Trojan Rat. O seu maior feito foi um soufflé de frango com sardinha. Facebooktwitterlinkedinmail

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