Paulo Renato Soares

Acredito que as histórias que reuni ao longo de quase 32 anos de carreira como jornalista (30 deles ao serviço do jornal Record) têm mais piada se contadas numa roda de amigos, se possível à mesa, com boa comida e boa bebida a acompanhar. Se a ‘coisa’ tem pouco interesse, os pormenores e a forma de os contar, no momento, acrescentam o sal sempre necessário. Não é este o caso, como já se percebeu. O desafio do Relato impõe a escrita e uma regra: “tem de ser sobre futebol”.
A dificuldade começa logo nessa baliza. E digo dificuldade porque nas últimas três décadas tive oportunidade para lidar de muito perto com o futebol português, mas também fui enviado-especial a provas de automobilismo (Fórmula 1 e outras disciplinas) e de ciclismo. E neste particular, com quatro edições do Tour de France, uma do Giro de Itália e sete da Volta a Portugal, muito podia relembrar, que mais fosse aqueles tempos, ainda na pré-história do envio dos textos por linha telefónica, em que era necessário desmontar parte de um quarto de hotel para encontrar a tomada do telefone que, também ela, tinha de ser esventrada para descobrir os fios que eram depois unidos pelos ‘crocodilos’ à caixinha mágica que fazia a ligação ao extraordinário ‘tandy’.
O som da ligação do ‘modem’, quando era finalmente estabelecida, tinha, acreditem, a grandiosidade de uma ópera. Mais ainda quando era recebida a confirmação que o trabalho tinha chegado à redação. Mas o melhor mesmo é não entrar muito pelo caminho daquele anúncio televisivo do “ainda sou do tempo…”, porque há sempre o risco de falar da escrita direta na máquina do telex, sem hipóteses de recuar ou tirar a folha e recomeçar.
Pequenas ilhas de ‘stress’, muitas vezes bem mais intensas do que a tarefa de conseguir uma entrevista, sabendo à partida que o espaço no jornal estava reservado e ‘falhar’ não era opção. Não era… até não haver outro remédio, como em Abril de 1992, em Valência.
O Barcelona, que viria a ser campeão europeu nesse ano depois de bater a Sampdoria na final disputada em Wembley, jogava para o campeonato espanhol quatro dias antes de receber (e vencer) o Benfica e a missão do repórter era ‘simples’: observar esse jogo em Valência (a equipa da casa ganhou 1-0) e entrevistar (ou falar com) o treinador, Johan Cruijf. A primeira parte do serviço foi cumprida, a segunda… falhou. Descoberto o hotel onde a equipa catalã iria pernoitar antes do jogo, a ‘tática’ passou por esperar que acabasse o jantar e abordar depois o holandês. Nada feito. Cruijf olhou para o jornalista português que lhe saiu ao caminho e foi inflexível: “Não!” De nada valeram as insistências, nem sequer, depois, o ‘truque’ de, no dia seguinte, ocupar a primeira fila da conferência de imprensa pós-jogo com o Valência. Assim que levantei a mão para fazer aquela que julgava ser a primeira pergunta, o holandês olhou e antecipou-se: “Não há declarações sobre o jogo do Benfica. Só em Camp Nou, daqui por dois dias.”
O falhanço, total, foi aliviado pela reportagem, pelas declarações de Cruijf sobre aquela derrota com o Valência e por uma espécie de lei da compensação, que só percebi muito tempo depois. Não consegui entrevistar um dos meus ídolos dos tempos do fantástico Ajax, mas o que era isso em comparação com o dia em que fui o causador de um atraso de praticamente uma hora no arranque de importante congresso na Madeira? Que tem uma coisa a ver com a outra?, perguntarão e bem.
Acontece que antes dessa entrevista falhada, cerca de dois anos antes, fui enviado à Madeira para reunir material que serviria para editar e publicar um suplemento sobre o futebol madeirense. Numa altura em que havia três equipas na I Divisão: Marítimo, Nacional e União da Madeira. O plano, cumprido religiosamente, incluía reportagens com os três clubes, entrevistas com os respetivos presidentes e com o secretário regional do Desporto da Madeira. Havia ainda missão especial: conseguir entrevista com o dr. Alberto João Jardim.
Estávamos no início dos anos 1990 e o presidente do Governo Regional tinha agenda particularmente preenchida, pelo que o ‘timing’ não permitia acertos nem segundas hipóteses. Depois dos contactos, ficou estabelecido um momento: um sábado de manhã, às 9h30 numa unidade hoteleira perto do Funchal. Alberto João Jardim deslocava-se ali para discursar na abertura de um congresso e haveria ’20 minutos, nem mais um segundo’ para a conversa com o ‘jornalista do continente’.
Pouco depois das 9h00, não fosse haver atrasos, e na companhia do Hélder Santos, o homem da fotografia, assentei arraiais no bar do hotel e, enquanto esperava, dediquei-me a confirmar várias vezes se o gravador tinha pilhas e estava a funcionar, bem como fui revendo as perguntas que tinha para fazer. Passaram as 9h30, as 9h45, as 9h55 e nem sinal do presidente do Governo Regional. Quando o homem entrou no hotel, acompanhado do ‘staff’, já o relógio assinalava as 10h00. Estavam esgotados os tais ’20 minutos’, o congresso ia começar – todos os participantes já estavam a postos na sala – e portanto… falhava a entrevista e parte importantíssima do conteúdo do suplemento. Foi então que a voz inconfundível soou ainda no átrio do hotel, mas audível no bar, ali ao lado: “Onde está o jornalista do continente?” Levantei-me, fui cumprimentá-lo e, antes ainda de revelar o meu receio de não haver tempo, veio a pergunta: “Já bebeu café? Eu ainda não. Vamos lá.”
Os ‘20 minutos e nem mais um segundo’ transformaram-se em quase uma hora onde João Jardim respondeu a todas as questões, avisou que os perdedores (leia-se quem descesse de divisão) receberiam menos apoios monetários da Região e falou sobre uma das suas paixões: o futebol. Lá dentro, na sala do congresso, os congressistas esperaram, esperaram, até a entrevista terminar. Quando saí do hotel, ao som das palmas que vinham da sala do congresso, já passavam alguns minutos das 11 horas. A meio da entrevista, Alberto João Jardim, como que a tranquilizar-me, ainda me disse qualquer coisa do género: “aquilo começa quando começar”.
Talvez pudesse agora contar aquele dia em que tentei, em conjunto com o jornalista António Gomes Ferreira, reunir Sven-Göran Eriksson e Marinho Peres para entrevista conjunta antes de um Benfica-Sporting. A ideia, ‘genial’, até incluiu uma mesa de matraquilhos colocada no centro do relvado do antigo Estádio da Luz. Onde os dois treinadores se deixariam fotografar. A entrevista aconteceu, sim, mas a foto não. Foi trocada por outra, num hotel de Lisboa, em que ambos ficaram frente a frente com um tabuleiro de xadrez como mote. Pequenos-grandes triunfos/falhanços de uma profissão em que ainda acredito. Não obstante estes tempos estranhos que vivemos.


Escreve também regularmente sobre automóveis e antes das três décadas como jornalista do Record, teve passagens pelo semanário de espectáculos Êxito, Jornal do Comércio, O Jogo, TSF e Radio Gest.

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