Miguel Sousa Tavares

O meu filho mais novo fez agora seis anos: está a entrar na idade em que deve começar a ser introduzido a alguns dos horríveis rituais machistas lusitanos. O futebol, por exemplo.
Um dia destes, pego nele pela calada e aí vamos nós para Santa Apolónia, apanhar o Inter-Cidades para o Porto, a caminho do Santuário das Antas, do ronco do Dragão e do perfume do Jardel – nome que ele, aliás, já conhece de cor.
Visto que agora já começou a aprender a ler, o primeiro gesto há-de ser o de comprarmos leitura de viagem para os dois. Jornais, para mim, BD’s para ele (embora eu também seja um grande leitor de BD, algumas das quais o deixam extasiado quando, por inadvertência, me esqueço delas ao alcance dele, como a BD erótica do Milo Manara). Comprada a leitura, iremos instalar-nos num compartimento e partilhar aquela excitação mágica dos minutos antes da partida do comboio.
Aliás, tenho 300 kms pela frente para lhe ensinar toda a magia do comboio. Começarei por lhe tentar explicar como é deslumbrante e leve a estrutura da Gare do Oriente, na EXPO, obra de Santiago Calatrava. Depois, identificar-lhe-ei os rios, ao longo do caminho: o Tejo, o Mondego, o Vouga e o Douro. Depois, as estações e os apeadeiros, as casas do chefe-de-estação, com o seu inevitável quintal de couves portuguesas. A meio caminho começará a chover, surgirão velhos edifícios esventrados de fábricas abandonadas, ruas tristes de paralelepípedos correrão ao lado da linha, alguns carros esperarão na passagem de nível enquanto uma senhora levantará melancolicamente uma bandeira à nossa passagem, o comboio parará em Fátima, Coimbra B, Aveiro e Espinho. Ele quererá saber o nome e o destino de cada terra e na sua cabeça de criança ficará guardada a mesma imagem que eu guardo de infância: um comboio que atravessa rápido, como se estivesse em fuga, um mundo estático, feito de personagens de presépio que parecem plantados nos campos, nas ruas, nas estações, com a única finalidade de nos olharem enquanto passamos.
Almoçaremos no vagão-restaurante, com os copos a tilintar e os talheres hesitantes sobre o molho béchamel da pescada à portuguesa e eu lembrar-me-ei de quando tinha também seis anos e sentado também à mesa do restaurante do «Foguete» seguia o fumo do cigarro da minha avó, enquanto ela olhava distraída pela janela, um olhar que parecia pintar a paisagem de azul.
No tempo da minha avó, a velha travessia da periclitante ponte de D. Luís, à chegada ao Porto, era sempre antecedida de um acto de contrição, rezado em voz alta no silêncio da carruagem – e eu aterrorizado, de mão dada com ela, olhando as águas escuras do rio, lá em baixo, que esperavam para me engolir.
Disso, está agora poupado o meu filho. Infelizmente, já não chegaremos também a São Bento, depois de mergulharmos naquele túnel escuro, cheio de fuligem e ruídos metálicos de travões sobre os carris, mas que dava um ar final de mistério e aventura à viagem. Sairemos antes em Campanhã e apanharemos um táxi para eu lhe mostrar a minha terra: a Boavista, a Foz, o Campo Alegre, a Ribeira. A meio do passeio lancharemos na «Arcádia», e deixaremos as malas no pequeno Hotel da Boavista, na Foz, onde na minha infância se passava as tardes a jogar poker. Às 8 partiremos para as Antas, o último quilómetro feito a pé, por entre um delírio de azul-e-branco que é um verdadeiro deboche para os olhos de um portista exilado em Lisboa. Jantaremos, numa barraquinha, uma sandes de «entremeada» e uma cola para ele, uma sandes de «coirato» e um copo de vinho verde, para mim. Um pacote de queijadas para o jogo, cachecóis e bandeiras e aí vamos nós, o coração descompassado ao ritmo do ruído surdo dos passos da multidão no cimento do Estádio. Das entranhas escuras desse monstro de betão emergiremos para a luz ofuscante dos holofotes junto aos quais a chuva forma fios de prata brilhando na noite. Lá em baixo, o relvado, lindo, perfeito, parece esperar para ser pisado só por deuses, não por simples mortais. De repente, ele estremecerá, a sua mão apertará a minha, excitado e assustado, os olhos fixos na «boca do túnel» pela qual saem correndo, um a um, os onze deuses de azul e branco, saudados por um grito de cinquenta mil gargantas: «Po-oo-orto! Po-oo-orto!» Então aí, o meu filho perguntar-me-á, como costuma fazer: «é o petracampeão, pai, não é?» Este é o instante mágico, o instante iniciático, que sela para sempre o amor irracional entre um homem e um clube de futebol, um amor para a vida, que ninguém, jamais, poderá alterar.
Esta iniciação é tarefa de homem, dever indeclinável de pai, que mulher alguma entende. Nem sequer adianta depois tentar explicar: «Como é que é o futebol, mãe? Olha, um cheiro a bifanas, uma multidão aos gritos, uma relva a brilhar, azul e branco por todos os lados e nós, encharcados e roucos, patinando na lama à procura do carro.» Enfim, uma paixão inexplicável.


“Vou levar o meu filho às Antas” é um texto de Miguel Sousa Tavares presente no livro “Não te deixarei morrer, David Crockett”, que o autor nos autorizou a publicar no Relato. Facebooktwitterlinkedinmail

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5 comentários sobre “Miguel Sousa Tavares

  1. de COMBOIO A PASSAR A PONTE D. Luis DE COIRATO NA MÃO FOI NO SÉC XVII. e LAMA NO PORTO É CULPA DO RUI MOREIRA.
    LEVE O MIÚDO A PRAIA DA GRANJA UM RITUAL BEM MAIS MACHO !
    O CHEIRO DA RESINA DO DRAGÃO DA CABO DOS PULMÕES AO MIÚDO !

  2. Entremeada já desconfio mas pronto ainda pode ser mas coiratos à venda no Porto ?? Não será bifanas ? lol

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