Miguel Henriques

Entre 2012 e 2013 percorri o Brasil à procura das histórias dos jogadores brasileiros que marcaram a história do futebol português num projecto a que chamei “Oceano de Histórias”.
Numa das minhas viagens fui até à Bahia e pus na cabeça que havia de visitar Valença, a terra de Liedson. Nessa altura ele estava em Portugal a dar os últimos passos na carreira ao serviço do FC Porto, mas era a história de como ele tinha começado que me interessava. Não sabia onde ficava Valença e muito menos como se ia de carro para lá. Achava que tendo “contratado” um GPS para me acompanhar nesta aventura me daria a tal ajuda que precisava. Bem longe disso. Este aparelho de orientação andou mudo o tempo inteiro. Isto é, ainda mais perdido que eu, assim como o meu telemóvel, sem rede, na maior parte do tempo. Depressa me explicaram que o GPS na Bahia é o “boca a boca”, perguntar, perguntar e perguntar mais uma vez.
De indicação em indicação, saí de carro de Salvador, apanhei um ferry-boat e fiz mais 120 kms numa estrada pouco recomendável quer pelos buracos como pelo isolamento. Por ali passam mais urubus do que pessoas, o que não augura nada de bom. As palmeiras e uma paisagem feita de várias tonalidades de verde descansava-me um pouco mais. Era o sinal de vida e vitalidade que precisava de ver que contrastava com os necrófagos que por ali pairavam.
Cheguei finalmente a Valença, uma cidade grande no meio do interior baiano. À minha espera tinha um amigo do Liedson, Doriva de seu nome. Foi o melhor cicerone que podia ter tido, talvez porque nunca conhecerei outro. Desde o supermercado onde o “levezinho” trabalhava até ao principal campo da cidade, fui a todo o lado e com tudo e todos falei. A simpatia foi o melhor cartão de visita que levei.
Mas faltava ir à praínha. Um pequeno campo de areia com duas balizas que ficava na Bolívia, não o país, como é óbvio, mas sim na favela da cidade de Valença. Aqui existem duas facções que volta e meia lutam pelo tráfico e recorrem às armas para marcar território. Ainda há meia dúzia de dias tinha sido assim.
Doriva insistia que eu devia ir lá, achava importante para o meu trabalho, embora lembrasse que sozinho não entrava comigo. Era preciso alguém da comunidade para garantir que nada nos acontecia. Eu agradecia, mas dizia que se calhar não era preciso olhando para todo o material que levava comigo e para a minha vida, vendo-a a andar para trás. Se o brasileiro tem medo, então imaginem o português…
Agarrámos num FIAT Mille, um carro que aqui ainda se produz e vende mas que na Europa era conhecido como FIAT UNO e há bem mais de dez anos deixou de ser comercializado, e fomos entrando na favela. A cada buraco, um solavanco. Aquela estrada, ou melhor, aquele caminho fazia lembrar as crateras da Lua. Avançávamos quase à mesma velocidade que o Neil Armstrong. Fugir depressa parecia impossível. Metade do carro partia-se antes que se acelerasse o suficiente para sair dali.
Encontrámos à entrada da comunidade mais um amigo de Doriva. Ele dizia-me que aquela era a pessoa indicada para nos levar lá. Isto já depois de vários telefonemas infrutíferos a outros amigos que não podiam ou simplesmente declinavam o convite. A cada casa onde passávamos, o tal amigo cumprimentava as pessoas. Parecíamos um carro em plena campanha para as eleições municipais. Ele queria, simplesmente, que dessem por nós, obviamente para que tudo parecesse mais ou menos normal.
Chegados à praínha percebi que não seria possível ir até ao campo de futebol. Este foi o primeiro campo em part-time que eu conheci. Enquanto a maré não sobe, como é da sua natureza, joga-se. Depois tudo fica alagado e é tempo de esperar pelo dia seguinte.
Uma senhora muito preocupada com o meu trabalho pediu-me para subir à sua casa. “Cá de cima cê filma melhor”, dizia ela. A humildade da sua casa por fora e por dentro não a impediu de me convidar a entrar. No meu português brasileiro, ou algo que deveria soar simplesmente ridículo, eu agradecia e não podia deixar de olhar para as paredes despidas onde sobressaía a cor de tijolo. Só a televisão num tom alto trazia um aconchego que a casa por si só não dava.
Subi à varanda. Filmei o campo rapidamente, não tremia, mas olhava para todo o lado. Talvez por isso a filmagem não tenha sido a ideal. Desci rapidamente, embora cá em baixo os meus companheiros me tranquilizassem afirmando que estava tudo calmo: todo o mundo estava avisado. Lá entrei no FIAT Mille e voltei aos solavancos. Entre acenos para aqui e para lá, saímos da Bolívia e passámos a fronteira até entrar em solo brasileiro mais seguro.
Tudo isto para filmar um campo cheio de água onde só se distinguia a baliza, tudo isto para mostrar o lugar onde o Liedson deu os primeiros pontapés e marcou os primeiros golos. Mais do que a história dele, fica esta vivência minha para recordar. E só por isso valeu a pena lá ir.


Iniciou a carreira no Desporto da Antena1, fez parte da equipa do SAPO Desporto e produziu recentemente o documentário de Nelson Évora para a SIC. Facebooktwitterlinkedinmail

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Um comentário sobre “Miguel Henriques

  1. É evidente que quero e devo deixar aqui o meu comentário. É que tu escreves com uma linguagem tão simples e natural que até eu me senti a viver a tua aventura, dentro do Fiat Mille, caminhando para esse tal campo de futebol que funciona em part-time! Parabéns Miguel por estes tão encantadores relatos. Continua em frente. Beijinhos

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