Luís Mateus

Adoro estádios vazios. Os velhos, não os de agora, todos xpto. Demasiado bonitinhos. Arrumadinhos. Pintadinhos. Onde não falta uma cadeira. Parecem nunca ter perdido o cheiro e o Pintado de Fresco que o acompanha. Gosto mais dos velhos. Do betão enrugado, cru, ou comido por cores esbatidas, que perderam a consciência das próprias fronteiras e se misturam diabólicas para quem, como eu, já vê mal ao longe. Do peão. Das bancadas que insinuam o cheiro a suor e a glória com o abrir dos portões, dos túneis em que ecoam golos de memórias passadas.
Aquele que mais me impressionou estava vazio. Nu, para olhos que não estes. Silencioso para qualquer outra alminha. Um estádio vazio é como um santuário de batalhas antigas, ganhas e perdidas. Golos mágicos, frangos terríveis, aumentados por insultos feios, por entre as pernas. O keeper que se debruça para engolir a bola, e é engolido por ela, cobra inofensiva que vira anaconda, e começa uma digestão lenta, demorada e difícil.
O estádio que mais me impressionou foi a Luz. A velha. A dos três anéis, e da vertigem de olhar para cima. A Luz que se apagou. Já estive na Nova muitas vezes. Muitas dezenas, não quero errar. Sentei-me num dos melhores locais de todos, na final do Euro-2004. Estava tão perto do relvado, que se, no momento do pontapé de canto, saltasse daquela bancada-extra para jornalistas ainda arriscaria chegar a tempo de saltar com Charisteas e evitar a catástrofe. Estive no Stade de France há um mês, e vi o patinho mais feio a celebrar e os outros patinhos feios a correr atrás, sem o conseguir agarrar. Nós lá em cima, a ver história a ser escrita, passo a passo, antes dos confettis. E, mesmo depois de tudo isto, não vivi nada como aquilo, nenhum dia como aquele 5 de março de 1997. Bancadas vazias, eu junto ao relvado. Pequenino.
Old Trafford. Vélodrome. San Siro. Camp Nou. Bernabéu. Parque dos Príncipes. Arena. De Kuip. Estive em muitos mais. Nada se compara àquele betão esventrado, que nos chama lá de cima.
Saí em serviço pela primeira vez para o jornal A Bola – terá sido eventualmente a estreia sozinho, porque lembro-me de ter andado pela Amadora a tentar caçar, com um colega, o bombeiro que tinha sido mordido por um jogador do FC Porto; alegadamente. A Fiorentina regressava à Luz, e Rui Costa já tinha secado as lágrimas de duas épocas antes, jogo de apresentação dos encarnados. Agora, a primeira mão dos quartos de final da Taça dos Clubes Vencedores das Taças.
Conto-vos o que era Rui Costa para mim. Tem hoje 44 anos, mais dois do que eu. Cresci ao mesmo tempo, à distância. Quando todos sonhavam com golos, vibrava com túneis e fintas de corpo. Na altura, cuecas e cabritos, desenhados em pelados abrasivos, filtrados do resto da terra por cal viva. Passes a rasgar, assistências de dez. Maradona tinha-me feito acreditar no impossível, Rui Costa era, dez anos depois, o meu novo Pelusa, génio da Seleção e nação firenze. Como? Ah, a resposta? Era tudo!
Subo o túnel, fico do lado de cá do fosso. Havia um fosso, lembram-se? Quase ali ao alcance de um toque no ombro. Com os braços do Phelps talvez, agora que penso nisso. Exagero, claro. Rui Costa cruza, meias descaídas, para a finalização, sem oposição, de Batistuta, Schwarz, Baiano e Oliveira – acho que eram estes –, e debaixo do olhar atento de Claudio Ranieri. Sim, sim, o do Leicester.
A bola ainda mais redonda. Mais leve. Ao fim de uns quantos pontapés de moinho, saltos de peixe e o abanar sucessivo da rede, vira-se para trás, para o banco onde está um dirigente do Benfica, e olha de lado para mim.
– Bombocas! São bombocas!
E ri-se. São. Eram. Quase que juro que olha de lado para mim.
A Fiorentina vence no dia seguinte, por duas bombocas a zero, de Baiano e Batigol. Rui Costa está no início da jogada que desequilibra o embate com esse Benfica menos imponente, alicerçado no talento de Preud’Homme e João Vieira Pinto, e com nomes sem grande poesia como El Hadrioui, Jorge Soares, Jamir, Bruno Caires, Hassan ou Mauro Airez.
Nessa noite de véspera, Rui Costa passa pela sala de imprensa, sem se sentar. A Fiorentina está em blackout.
– Meteram-me um zip na boca, desculpem!
O centro do mundo mudara. Cumprimenta toda a gente. Eu, feito parvo, arrisco. Peço-lhe a camisola de treino. Já nem sei o que disse para justificar, talvez o que ele significava para mim. Claro que sabia a resposta, não sejam mais parvos do que eu. Havia tanta gente nos primeiros lugares da fila, que não havia hipótese. Mesmo assim, acho que o Rui não disse que não. Não conseguia. Voltasse, e ia ver. Não voltei. O jogo era para outros, que até já deveriam ter a sua camisola. Era injusto, mas tinha de aceitar.
Aquele estádio vazio, imponente e silencioso estava longe de ser só o santuário de batalhas antigas, e já não seria pouco. Estava cheio com Rui Costa, e com a sua magia eterna. Eu, feliz da vida, porque nunca tinha estado tão perto. Smartphones houvesse e teria tirado uma selfie. Ao contrário da de Schooling e Phelps, não iria fazer nada pela minha carreira de futebolista, já terminada. Já o jornalista continuou a acreditar na magia, e a gostar de ouvir o silêncio dos velhos estádios vazios.


Jornalista, começou a carreira no jornal A Bola e entrou para a equipa do Maisfutebol em 2001, onde actualmente é director, além de integrar a direcção editorial do IOL.

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