Luís Freitas Lobo

O tempo de espera na tribuna do Frankenstadion de Nuremberga parecia interminável. A ansiedade de ver e sentir Portugal voltar a jogar, 40 anos depois da epopeia de 66, os oitavos-de-final de um Mundial quase que torna o maior futbólogo insensível ao facto de, durante esses momentos, estar lado a lado com monstros como Beckenbauer ou Platini.
O tempo passa lentamente. Calor sufocante. Meninas simpáticas em traje azul claro conferem as cores das pulseiras VIP. Foi então que, quase anónimo para a maioria dos presentes, sobe as escadas, com credencial de imprensa, um homem que, embora há alguns anos afastado dos grandes palcos, solta, no meu imaginário, um intenso aroma a bom futebol: Pacho Maturana, um treinador colombiano que, na passagem dos anos 80 para os 90, congeminou um dos mais atraentes projectos de belo “fútbol” do final de século.
Por ser um estilo esteticamente tão elegante, desenhando jogadas de pé para pé a toda a largura do campo com um índice técnico notável, acariciando a bola como se fosse de veludo, ficou conhecido como o Toque. Valderrama era o líder, mas toda a equipa tocava, tocava… E os triângulos por todo o campo iam-se desenhando como uma aranha zurze a sua teia.
Está claramente mais velho. Não só na aparência, como no discurso, quando me confidencia que no futebol actual já não há espaço para tanta beleza, para tanto toque. Talvez por isso se tenha afastado das canchas, porque como sempre disse, mesmo durante o auge da sua carreira: “Há que morrer sem se atraiçoar a si próprio!”
Os 26 toques dados pela Selecção argentina antes de fazer um golo de sonho à Servia poderiam desmentir esta visão fatalista, mas, no fundo, Pacho tem razão para ter escurecido o seu olhar face ao “fútbol” actual.
Portugal e Holanda estão quase a entrar em campo e, nesses instantes, penso que pode estar aqui uma oportunidade para resgatar uma réstia desse perfume. Cada qual no seu estilo, portugueses e holandeses são dos que, em campo, gostam mais de tocar, tocar… Anseio por demonstrar a Maturana que ainda há toque no futebol europeu, mas bastaram poucos minutos para que esse sonho virasse utopia.
As entradas de Van Bommel e Boulahrouz a Cristiano Ronaldo são como setas lançadas no coração do bom futebol. Calma. Quando a bola vem parar aos pés de Deco o Mundo fica subitamente mais belo. A bola parece outra vez feita de veludo. Na Holanda, Van Persie inventa dribles maradonianos, mas não há nada a fazer, sente-se que a dimensão física do jogo vai devorar o perfume do toque.
Quando, após longos minutos em campo, tentando iludir a dor da marca dos pitons cravados na coxa, Ronaldo decide, por fim, sair, os duros laranjas Boulahrouz e Oiijer tocam, discretamente, as mãos, num claro gesto de missão cumprida. Ainda a batalha da segunda parte parece impensável e já nem tenho coragem de encarar Maturana. O futebol actual tornou-se, de facto, num cemitério de sonhos para os amantes do… outro “fútbol”, o do toque.
Quando Deco é expulso por ter segurado a bola por curtos segundos, já todos esqueceram o veludo do seu toque. Sem pestanejar, ambas as equipas atraiçoaram a sua genética futebolística. Esqueçam a arte, portanto. Isto é o futebol como ameaça.
Acaba o jogo, tenho a satisfação de Portugal ter ganho, mas quando, meio a receio, olho para o lugar onde estava o meu velho ídolo romântico, já não consigo cruzar os olhares com ele como fiz durante o jogo. Já se levantara e saíra, entretanto. Recordo então o que me dissera quando eu tanto insistia “que, não, que era possível e ele era dos que mais me fizera sonhar com isso”. Maturana tinha sempre resposta, falava de tácticas e técnica, mas foi esta que nunca mais esqueci. Falava de futebol mas serve para tudo: “Quando sabia todas as respostas, a vida mudou-me as perguntas!”
A solução será mesmo a de seguir a opção do pai de Maturana. Fechar-se numa casa nos arredores de Quibdó, na Colômbia, rodeado de árvores que crescem na terra húmida, e seleccionar as imagens na nossa memória. Na parede, logo à entrada, a receber os visitantes, um quadro com uma frase que resume a filosofia dos amantes das causas perdidas: “Bem vindos ao recinto de um loco feliz!”
É o que faço hoje na minha casa junto à praia, no Mindelo, perto de Vila do Conde, abrigando nela infinitas fitas, cassetes, DVDs, revistas, livros, jornais, papéis, tudo que possa existir de futebol desde séculos passados. A placa já está feita e espero em breve colocá-la à porta.


Desde 1997 que procura passar a paixão que sente pelo futebol, através de jornais e revistas, da rádio e da televisão. Actualmente é comentador da SportTV.

Esta é uma das 20 histórias inéditas, num total de 100 presentes no livro “Relato – Histórias de Futebol”, que pode ser adquirido em todas as boas livrarias ou encomendado aqui. Facebooktwitterlinkedinmail

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