José Gabriel Quaresma

A idade maior. Dezoito anos. Parece que foi hoje, uma das cenas mais nonsense da minha carreira de jornalista.
Dia 6 de Setembro de 2005, Moscovo. Tínhamos acabado de fazer a cobertura da conferência de imprensa da Selecção portuguesa que ia jogar no dia seguinte contra a Rússia. Era Luiz Felipe Scolari o seleccionador.
Eu e o Miguel Bretiano, o repórter de imagem que fazia equipa comigo, decidimos deixar a edição da reportagem para o dia seguinte. Tínhamos mais do que tempo. O jogo era à noite e a peça era para o jornal da uma.
Moscovo é uma cidade brutal, tínhamos de aproveitar porque oportunidades destas não aparecem todos os dias. Aliás, nunca mais lá fui. Estivemos quatro dias em Moscovo. Durante quatro dias fomos observados, seguidos, revistados, questionados. Eles não brincam.
Nesse dia, de manhã, fomos visitar a maior contradição do planeta, a Praça Vermelha. De um lado o Kremlin e a sua imponência que nos traz à memória a história, do outro as lojas das maiores marcas consumistas do planeta. Havia de tudo: Kenzo, Karl Lagarfeld, Dolce & Gabanna, Versace, Dior. Era só escolher.
À saída do táxi reparámos numa carrinha, com uma das portas laterais abertas. Sentado, virado para o lado de fora, um homem vestido com um fato preto. Todos eles vestiam fatos pretos. Na mão, apesar do calor, um chapéu de chuva apontado para nós.
A câmara do Miguel despertava as atenções. Moscovo sabia que, por aqueles dias, havia equipas de jornalistas estrangeiros na cidade. Todo o cuidado era pouco. Aquele chapéu de chuva tinha uma micro-câmara na ponta, os nossos passos eram seguidos milímetro a milímetro, desde que pisámos território russo.
Fomos visitar a monumental praça, pedimos autorização para tirar fotografias, não havia digital, ainda eram máquinas fotográficas a sério. “Tudo bem, filmar é que não”.
À tarde fomos para a conferência de imprensa. À noite fomos jantar, em comitiva, ao Hard Rock Café, que mais parecia uma taberna de terceira. Pelo menos recordo-me dos oleados que cobriam as mesas a fazer de toalhas. Nunca mais me esqueci.
A partir desse momento esqueci-me de tudo, dado o número de vodkas que bebi. Só me recordo de acordar, no dia seguinte, em sobressalto.
Nós estávamos num dos mais recentes e modernos hotéis de Moscovo. Os quartos não tinham janelas. “Por causa dos suicídios”, disseram.
O dia estava planeado: editávamos a peça, fazíamos o stream para Portugal e íamos passear.
O sobressalto veio através do telefone.
– Estou?
– Gab, já sabes da notícia? Morreu o pai do Cristiano Ronaldo. Não se sabe se ele vai jogar ou
se vem para Portugal. Preciso que vás já para o hotel da Selecção para entrares em directo.
Dezoito anos depois ainda me custa a acreditar no que aconteceu, em todos os aspectos. Liguei para o quarto do meu repórter de imagem, em pânico:
– Miguel, estamos lixados! Temos de ir para o hotel da Selecção porque morreu o pai do Cristiano Ronaldo e não editámos a porcaria da peça.
– Vou já ter contigo.
O Miguel apareceu em menos de dez minutos. Aflito, como eu.
O stress era brutal! Íamos levar cerca de meia hora até ao hotel. Na redacção sabiam disso, não tínhamos tempo.
Pedi ao Miguel para ligar para o bar e mandar vir garrafas de água. Quando estou em stress total só a água me vale.
Ligámos a mala de edição, que naquele tempo era tudo analógico, e começámos a editar a peça. Acho que foi a reportagem mais rápida que editei na minha vida. Talvez uma meia hora.
Eis quando, do nada, batem à porta do quarto.
– Quem é, caralho?
– Towel count…
– Abre aí, Miguel. Vêm contar as toalhas.
Sentado à secretária, com a máquina de edição aberta, seis garrafas de água de litro à minha frente, vejo dois homens entrar pelo quarto, vestidos de fato preto. Olharam em volta, entraram na fantástica casa de banho do quarto – até LCD tinha na parede – miraram o quarto, olhares estranhos, deram meia volta e saíram. Os KGB voltavam a atacar.
A peça estava terminada, mas o pior estava para vir.
Tínhamos de ir até outro hotel, no centro da cidade, para fazer o playout da peça para Portugal. Nesse hotel, as prostitutas ladeavam os corrimões, lá no alto. Viam-se do átrio.
Na recepção pedi para subir ao segundo andar, onde se situava a redacção da Reuters.
Que não, não havia Reuters naquele hotel.
Uma hora já tinha sido queimada.
Insisti, mostrei o cartão de visita da produtora.
Finalmente, a autorização.
Deram-nos as indicações: “viram à esquerda, apanham o elevador e sobem até ao segundo piso”. Assim que saímos da recepção do gigantesco hotel, enquanto as prostitutas sorriam, debruçadas nos corrimões, outros dois homens, vestidos com fatos pretos.
Revistaram-nos, passaram o detector de metais. Finalmente tínhamos chegado ao segundo andar. A peça seguia para Lisboa. Faltava chegarmos ao hotel da Selecção, preparar o carro de exteriores e entrar em directo.
O jornal da uma já tinha começado.
A pergunta foi demolidora, nem sequer tínhamos tido tempo para pensar no directo que íamos fazer:
– José Gabriel Quaresma, boa tarde. Cristiano Ronaldo vai jogar ou vai voltar para Portugal?
– Boa tarde, Cristiano Ronaldo conversou com Luiz Flipe Scolari e vai jogar esta noite em Moscovo.
Tinha sido eu a dar a notícia em primeira mão, apesar de estar uma hora e meia atrasado, de ter feito vários quilómetros em contramão, porque os taxistas moscovitas são alucinados. Estávamos safos.
Bendito Amândio de Carvalho (vice-Presidente da FPF e meu querido amigo, também ele já desaparecido), que me tinha confirmado a informação.
Foi ela, a informação, que nos salvou a cabeça.
Depois de um dos dias mais complicados da minha carreira, tudo se encaixou.
À noite, à chegada ao estádio, novamente depois de alguns quilómetros em sentido contrário, a maior das confusões. Militares contra militares, polícias contra polícias e uma limusine no meio. Vladimir Putin estava a chegar ao estádio e ficou preso no trânsito. Ali mesmo, nas nossas barbas.
Como os taxistas de Moscovo são loucos, conseguimos chegar, enquanto a confusão continuava. Portugal jogava a qualificação para o mundial da Alemanha.
O resultado foi um empate sem golos.
Foi a partir desse dia que fiquei profundo admirador de Cristiano Ronaldo.
Mais do que o talento único que o leva a ser, para mim, o melhor jogador da história, a minha admiração por aquele miúdo, que conheci tinha ele 15 anos, assentou no carácter.
O pai tinha acabado de morrer.
Ele vestiu a camisola portuguesa e sofreu, por nós, por um país inteiro.
É isso que admiro nele, aquilo que ele é, enquanto homem. Eu não tinha sido capaz de jogar aquele jogo. Preferia mil vezes conduzir em contramão.


Entrou na TVI, em 1995, e hoje é pivot e editor da TVI24. Publicou os livros “Livro Directo – A Biografia Oficial de Mantorras” e “Out Of The Office”. Facebooktwitterlinkedinmail

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