Jorge Sequeira

Trabalhei com o professor Jesualdo Ferreira no Sporting de Braga, quando o clube começou a sair da casca. Chegámos a lutar pelo título e subimos aí essa escada. Tinha acabado o meu doutoramento, estava fresquinho, pensava que sabia muita coisa e, na altura, a Associação Nacional de Treinadores de Futebol tinha um curso de nível IV Pro UEFA. É o curso de mais alto nível que existe no mundo e não é feito com muita frequência porque para que os treinadores cheguem a esse nível já precisam de ter uma série de requisitos que poucos terão. E convidaram-me para dar Psicologia do Desporto. Trabalhava no futebol, era doutorado, supostamente devia perceber alguma coisa daquilo e fui, contente e feliz.
Apanhei uma turma de superstars com Carlos Brito, José Peseiro, Carlos Carvalhal e mais umas poucas vedetas que agora não me estou a lembrar. E foi aí que conheci o José Mourinho, que também foi meu aluno. Na altura ele estava a despontar. Tinha saído do Benfica e tinha ido para o União de Leiria. Já era um homem reconhecido e respeitado, e criámos uma relação interessante. Não sou amigo dele, mas conhece-me.
Recordo-me que eram 40 treinadores e era tudo já gente sabidola, gente da vida do futebol. E ao pé deles era um bocado tenrinho. Não é que eu seja anjinho, mas, ao pé daqueles ninjas, não era comido de cebolada porque não sou propriamente um totó, embora fossem todos uns bons galifões, como se diz aqui no Norte.
Tive várias aulas com eles e às vezes virava-me, num tom porreiro e simpático, e dizia-lhes:
– Ó gente boa, vamos lá fazer aqui o cursinho com dignidade senão isto está tramado.
– Podíamos era ir almoçar um peixinho a Matosinhos.
– E vamos! Mas primeiro vamos acabar isto a horas porque isto é o maior curso da Europa e do Mundo! Não podemos ir já almoçar sem justificar o rancho.
Era uma expressão que usava na altura, o da “gente boa”. E o Mourinho já era um homem interessado e curioso. Enquanto alguns estavam mais à espera de ver o canudo porque precisavam daquilo, o José Mourinho fazia perguntas pertinentes e punha a malta a pensar. Dava casos da sua experiência no Barcelona e no Benfica, interrogava-nos e via-se que era um homem inquieto no sentido saudável do termo. Queria sempre saber mais. E sempre que ele tinha essas intervenções eu dizia: “Palavras sábias, senhor Mourinho”. Porque, de facto, eram questões relevantes, do género: como motivar um atleta? Como incrementar a sua concentração? Os atletas devem usar o telemóvel antes do jogo? Coisas da vida real e que nos punham a pensar.
E, por isso, ficámos mais ou menos com este código entre nós. Depois ele foi para o FC Porto, eu estava no Braga, e encontrávamo-nos antes dos jogos. E eu sentia, naturalmente, um certo orgulho porque aí é que ele começou a desbundar o futebol, quando se sagrou campeão europeu. Ia jogar à pedreira de Braga e já toda a gente olhava para ele como um mito. E ficava muito orgulhoso porque vinha cumprimentar-me por nos conhecermos daquele contexto, até por alguma delicadeza por ter sido professor dele.
Uma vez estávamos no relvado, ainda no aquecimento, ele tocou-me nas costas e disse:
– Ó gente boa!
– Palavras sábias, senhor Mourinho!
Aquilo ficou quase como senha e contrassenha quando a gente se encontrava.
Houve uma história curiosa ainda durante o curso. Foi quando ele foi para o Leiria. Foi uma conversa nos corredores, durante um intervalo. Eu disse-lhe que lhe ia contar uma história sobre o Leiria e ele:
– Não vai sair daí grande coisa….
Eu estava sempre a brincar e ele tinha razão. De facto, não saía grande coisa do meu lado! Não era mentira nenhuma.
– Ó mister, para si qual é a melhor equipa do campeonato?
Estava à espera, como é natural, que me respondesse o Benfica, o Sporting ou o FC Porto.
– A melhor equipa do campeonato é o Leiria.
– Ó mister, assim não vai longe.
E viu-se onde ele chegou! As minhas palavras foram proféticas, mas ao contrário.
Mas ainda peguei com ele em relação ao Leiria.
– Enquanto que numa equipa normal os adeptos sabem os nomes dos jogadores, no Leiria é ao contrário: aquilo tem tão pouca gente que os jogadores é que sabem os nomes dos adeptos!
– Vá para o caraças!
Era eu e os outros treinadores a pegar com ele.
– Perante isto, como é que me diz que o Leiria é a melhor equipa?
– Por uma razão muito simples: é a minha equipa, há-de ser sempre a melhor.
Mais tarde, usei este exemplo noutras coisas da vida. Aprendi com o José Mourinho uma coisa: a melhor é sempre a nossa. Às vezes dizemos que o carro daquele gajo é que é bom, ou que a casa do outro é que é boa. Mas não. A melhor casa é a minha, porque é ali que tenho abrigo. O melhor carro é o meu, que serve para me transportar. Aquele Ferrari que ali está não me leva a lado nenhum. Se calhar levava-me à desgraça porque não tinha dinheiro para pagar o seguro!
E vejam o que o Mourinho fez: chegou ao Leiria, fez deles uma equipa europeia e hoje já desapareceu. Pegou em meia-dúzia de jogadores e fez deles superstars, os Derleis da vida.
Passei anos sem ver o Mourinho e há tempos, de forma inesperada, encontrei-o. Da forma mais bizarra que podia encontrar. Nunca mais o tinha visto. Ele foi para o Chelsea, para Madrid, foi para o Mundo, para outro planeta, e eu continuei a viver na Terra. Tornou-se galáctico e foi para as estrelas! E muito bem, tanto que nas minhas talks falo muito dele como um exemplo da portugalidade. Há cerca de dois anos encontrei-o. Eu moro ao lado do Estádio do Bessa e tinha ido encher um bocadinho ao ginásio, que fica a uns 200 metros da minha casa. Já era de noite, estava a regressar a casa, e ia ali com os meus botões quando vejo uns gajos de fato de treino azul à minha frente. Nem liguei grande coisa. Eles eram seis e fui-me aproximando deles. Iam num ritmo de passeio, via-se que não estavam com pressa. Quando reparo bem é que vejo. “Aquele gajo é o Mourinho!”. E gritei-lhe:
– Hey, mister! Espectáculo! O meu amigo aqui à porta de minha casa.
Ele ficou surpreendido e perguntou-me o que é que estava ali a fazer.
– Eu vivo no mesmo bairro, o mister é que foi para o Mundo tomar conta disto tudo!
Fizemos uma grande festa, até aproveitei para tirar uma selfie com ele. Estava ele, o Silvino e não me lembro mais quem.
– Então é com estes rotos que tem feito magia aí pelo Mundo?
– É verdade! Com estes quatro palhaços e aquele inglês.
O Silvino também tinha sido meu aluno. Só me arrependi de não o ter convidado para subir a minha casa. Provavelmente ele recusaria porque tem mais que fazer, mas devia ter convidado.
E encontrei-o ali porque o Chelsea veio jogar com o FC Porto e o hotel Sheraton, que foi onde ficou o Chelsea, fica dois quarteirões ao lado de minha casa. E o Mourinho andava ali a fazer o famoso passeio higiénico que todos os treinadores fazem depois de jantar quando não está a chover.
Mas sempre me arrependi disso. Tenho um puto de nove anos e no dia seguinte mostrei-lhe a fotografia com o José Mourinho. E ele perguntou-me:
– Por que é que não disseste ao Mourinho para vir cá a casa?
– Por acaso fui burro. Podia ter convidado.
Era só subir as escadas. Ele podia não aceitar, mas, se aceitasse, devia ser o máximo acordar o meu filho e ele ver ali o Mourinho. Ele acordava e ia pensar que estava em Inglaterra. E o Mourinho, como é um bom cromo e um gajo passado da cabeça, no melhor sentido do termo, era menino para isso. A mim, se pedissem, ia. Claro que não sou importante como ele, mas ia.


Psicólogo, doutorado em treino mental de alto rendimento, é dono da empresa Team Building, foi candidato a Presidente da República e há uns anos podíamos vê-lo no 4-4-1, programa da TVI24. Facebooktwitterlinkedinmail

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