Um relato? Sobre a minha experiência a acompanhar o futebol? Sinceramente… sei lá! Estive em tantos países, em vários continentes, com tantas equipas…. Não sei se consigo escolher uma história! Além de que muitas delas não teriam nada a ver com futebol.
De Moscovo, daqueles 5-0 da seleção, antes da queda do muro de Berlim, lembro-me mais da guia, mãe recente, que de lágrimas nos olhos nos devolveu (às pessoas do autocarro) a gorjeta. O montante era superior a vários meses de trabalho e não podia receber dólares – sobretudo quando, ao lado, o motorista, severo, mostrava estar atento; e rublos, a caminho do aeroporto, poucos sobravam a cada um de nós. Um drama.
Idem para a ida do Sporting à Albânia, poucos anos depois da morte de Enver Hoxha. Recordo com maior precisão o aeroporto, mais estranho que a estrada de Gibraltar e o barracão-anexo a que chamavam gare, malas espalhadas e cada um que identificasse a sua. Casas com plásticos a fazerem de vidro. E também recordo o controleiro, que nunca largou os jornalistas e falava como se soubesse o que cada um de nós tinha escrito.
E podia continuar, da Praça Tianamen, em Beijing, ou Pequim como lhe chamam os portugueses, à 5.ª Avenida, de Nova Iorque, passando por Haifa ou Jerusalém e pela baixa de Luanda, onde o meu saudoso amigo Neves de Sousa conseguiu convencer-me a jogar às moedas o quadro dos elefantes, grande e vermelho, que eu tinha comprado porque o vira primeiro. Ganhou ele.
É assim: quando olho para trás, sinto-me mais tocado pelas pessoas que pela competição. Por isso, durante alguns meses adiei este texto. Não conseguia, e acho que não vou conseguir, um relato, uma história sobre futebol.
A verdade é que vivi momentos impressivos com todos os principais clubes portugueses de futebol. Desses, o mais intenso terá sido a final de Viena, com o FC Porto, em 1987. O único em que, como jornalista, tive um raro e fugaz eclipse de compostura. Eu nunca mexia um músculo durante um jogo em que participassem equipas portuguesas, acontecesse o que acontecesse. “Noblesse oblige”. Mas naquela tarde-noite, na imponente capital da Áustria, os jornalistas alemães comportavam-se como adeptos, uma coisa anormal, que raramente vi repetida. E, pronto, quando Madjer arrancou aquele calcanhar mágico… aconteceu. Podia contar a história pessoal desse momento, mas acho sensato guardá-lo só para mim. E também não desvendo ainda o segredo do “bruxo” Delano Vieira, meses mais tarde, em dezembro do mesmo ano, em Tóquio. Encontrei-o numa rua, perto do hotel. Estávamos na manhã da véspera do jogo com o Peñarol e Delano vinha de jornal na mão. Sentamo-nos para um café, talvez o mais caro da minha vida, e reparei que consultava com atenção suspeita os sinais universais da coluna de meteorologia. Estava a horas de fazer aquela célebre “previsão”, absolutamente extraordinária, sobre o vendaval de neve e gelo em que o jogo se disputaria no dia seguinte e no qual o FC Porto conquistaria a sua primeira Taça Intercontinental, o Mundial oficioso de clubes, que hoje evoluiu para uma competição diferente. Grande Delano, abençoados jornais.
Podia, ainda, lembrar a primeira vitória de uma equipa portuguesa em Inglaterra para as competições europeias, já que acompanhei o Sporting nessa noite em Southampton, corria o ano de 1981. Kevin Keegan, na sua fase descendente, não chegou para Manuel Fernandes (2 golos), Jordão e Oliveira. Foram 4-2. Podia ter sido pior para “eles”. E, no avião, de regresso, sentado ao lado de Malcolm Allison, apenas com o corredor pelo meio, notei como a viagem também poderia ter sido muito melhor para o treinador do Sporting. Infelizmente, não havia a bordo mais garrafas de Magos, uma bebida aparentada com espumante, que nem sei se ainda existe. Bebeu as dele, as minhas e todas as que pôde requisitar a vizinhos e conhecidos, mantendo sempre a sua britânica compostura e a simpatia sorridente. Abençoada resistência, a que ele tinha.
Podia, até, recordar momentos de outras finais europeias, agora com o Benfica. Uma em Bruxelas, com o Anderlecht, quando ainda havia Taça UEFA com decisão a duas “mãos”. Estive nas duas, e vi como, na Luz, o golo de Lozano, culminando uma jogada de Vercauteren (grande jogador, péssimo treinador, como se viu durante uns meses em Alvalade) acabou com as esperanças nascidas pelo outro, o de Shéu. Ver finais perdidas pelo Benfica é, aliás, uma das minhas especialidades. Minha e de toda a gente nascida há menos de 60 anos. A última foi em Turim, frente ao Sevilla, durante os anos de Jesus. E também teria histórias curiosas para contar.
No final, fico-me, pela minha vivência dos duelos Portugal-França, para Europeus e Mundiais. Comecei em Marselha: 3-2, meias-finais do Euro’84. Valeram os golos de Platini e de Domergue, um defesa esquerdo banal que naquela tarde se fez goleador (2). A França tinha uma equipa fantástica, Portugal tinha um conjunto que resistia a um original quarteto técnico no comando. Fernando Cabrita, coordenador de Toni, António Morais e José Augusto! Um recorde mundial do equilibrismo entre o FC Porto, que naqueles anos dominava o futebol nacional e o Benfica, cada qual responsável por mais ou menos 50% da equipa, durante um período de hibernação do Sporting. Jordão foi magnífico, Bento defendeu muito. Uma tarde em que nos faltou experiência de grandes momentos. Portugal ganhava a menos de dez minutos do fim….
Voltei a estar no desgosto seguinte: 2-1 no prolongamento, depois de 1-1 nos 90 minutos, no renovado Heysel Park, em Bruxelas. Aquela grande penalidade assinalada a Abel Xavier, no último minuto do prolongamento! Bem sei que as imagens mostrariam depois a “inclinação por instinto” do lateral português. Mas, sem VAR, a segundos das grandes penalidades que decidiriam um dos finalistas do Euro’2000, o árbitro marcaria ao contrário? Não acredito.
Terceiro ‘round’: Munique, de novo meias-finais, agora do Mundial’2006. Cheguei ao Estádio depois de incidências várias, com uma escala de emergência do “charter” em Madrid e sem malas para uma semana. Cheguei a tempo de ouvir a parte final do Hino e, pronto!, tinha de ser naquela baliza, atrás da qual estava, finalmente “à civil”, para desfrutar do jogo, que o Ricardo Carvalho tinha de cometer o penalty e Figo teria de falhar aquela entrada de cabeça à beira do fim. Fiquei pronto a ser convencido: mesmo com Ronaldo e Deco, não havia possibilidade: eu dava mesmo azar à seleção. Se até já tinha visto a equipa a perder o Euro’2004, em Lisboa….
Por isso, pelo interesse nacional, há dois anos, cheguei a hesitar: “vou ou não vou a Paris?!”. Estava em Pamplona a tentar descobrir a razão da paixão de Hemingway por San Fermín (mas sem nunca assistir ao sacrifício dos animais). Vou, fico, vou… fui! Grande final, um dos dias mais felizes da minha vida. Quem diz que o futebol é apenas um jogo não poderá nunca compreender os sentimentos desencontrados, de receio antes, de euforia depois, Campos Elísios abaixo à procura de um restaurante para a celebração, de novo com a Teresa. Como não estava em trabalho, creio que dessa vez mexi os músculos todos. Mas, ainda assim, considero injusta a observação daquela senhora, que até ali me parecera muito simpática, ida de Guimarães, que insistiu duas ou três vezes em que me poderia “acalmar” até porque o jogo já tinha “acabado”. Acabado?! “Ó minha senhora, isto com os franceses, nunca vai acabar”. Aliás, por mim, ainda agora começou.
Jornalista, colabora com o Jornal Económico, onde é responsável pelo blog “Objetivo”. Dirigiu os jornais Record, Correio da Manhã e Diário de Notícias e a revista Sábado. Assinou programas na TSF e RTP.