Eram vozes que se começavam a ouvir à tarde e prosseguiam noite dentro. Lembro-me dessas vozes na primavera que já se aproximava do verão, trazendo consigo promessas de gloriosos jogos europeus e a chegada das férias grandes. Vozes que saíam das ranhuras dos aparelhos de TV gordos e pesados, só dois canais, nenhum controlo remoto, a família inteira suspensa do ecrã abaulado e presa no tom nasal e sereno do Rui Tovar, tão lá de casa como se fosse um tio sábio e estimado na árvore genealógica, com a sua poltrona simultaneamente num estádio estrangeiro e no interior da televisão.
(Há muitos anos perguntei ao meu pai como é que cabiam tantas pessoas dentro daquela caixa, o Álvaro Cunhal falava no ecrã, e alguém me ensinara – quem? – que os comunistas eram vermelhos e os benfiquistas encarnados).
O Gabriel Alves fazia uma das suas interjeições de espanto se a bola rasava o poste, o Miguel Prates narrava uma recuperação histórica do Benfica, outra vez o Tovar durante um Mundial, sempre as vozes que, a cada ano, como as amendoeiras florindo no Algarve ou a mudança para a hora de verão, me anunciavam a passagem das estações e a chegada de um tempo mais quente, longo e livre, manhãs inteiras de carreirinhas, corridas de caricas e bolas de Berlim, peladinhas na areia molhada da maré vazia do fim de tarde em que eu era o Nené, o filho do faroleiro o Futre e havia sempre um Bento que escavacava os cotovelos e os joelhos em defesas de Homem-Aranha.
Lembro-me de correr da escola para casa, cinco quilómetros, porque havia uma greve da Rodoviária e não queria perder um minuto do jogo de abertura de um Mundial; trocara oito cromos por um do Maradona, e todo esse meu empenho eufórico pela causa futebolística parecia incentivado pelas vozes na TV, um chamamento encantatório, guiando-me para casa, vozes que contavam histórias tão importantes na minha vida como os filmes do Rocky e do Indiana Jones.
Houve uma tarde tão quente, em 1982, que todos os homens da família estavam em tronco nu, os meus tios, o meu avô, torcendo pelo Brasil de Falcão, Sócrates e Zico contra o sanguíneo Rossi – a minha primeira grande desilusão, quando Portugal ainda não era presença constante nas grandes provas internacionais e todos tínhamos a criatividade da canarinha, do país irmão, orgulhosamente próxima do nosso código genético lusitano.
Ou o meu choro na meia-final do Euro 1984, visto numa Salora a cores (o topo de gama das televisões de então) na loja de eletrodomésticos do primo do meu pai, Chalana o meu mártir, Platini o meu vilão, tal como seria dois anos mais tarde, no mundial do México – porque ainda que o francês tenha falhado um penalti, depois de beijar a bola, a França eliminava o Brasil.
Ou mesmo a final de Viena, num tempo tão inocente que, sendo toda a minha família do Benfica, torcemos loucamente pelo Porto – quem é que faria isso hoje?
Ou as finais do meu Benfica contra o PSV e o AC Milan, na Taça dos Campeões.
Os jogadores eram os intérpretes da minha ilusão, queria ser como eles, como quando, na equipa do 2ºD, na escola, todos adotámos os nomes dos jogadores da Holanda de Gullit e Van Basten. Mas as vozes da televisão eram o narrador, a voz off do filme, a banda sonora que teceria as minhas memórias quando o futebol nos parecia impoluto, um drama sem crispação mesquinha, sem as características de um reality show com flash interviews ad nausea ou cachecóis de um clube, na bancada, mostrando inscrições que desejam o aniquilamento do adversário e cidades a arder.
Se é verdade que muitas infâncias são, pelo menos retrospetivamente, felizes, também não é mentira que regressamos a elas com a esperança de recuperar uma candura e uma emoção futebolística que tinham muito mais de amor do que de fanatismo. E é por isso que, se oiço essas vozes na TV ou as recupero na memória, estou outra vez na rua após um “dois contra dois”, com balizas pequenas, num “muda ao cinco e acaba aos dez”; e que corro novamente para casa porque há jogo do Benfica, os prédios têm todas as janelas abertas a fim de amansar o calor do lusco-fusco e, no interior dos apartamentos, só as vozes e a intermitência dos ecrãs, a repetição de uma jogada com o R branco, piscando, no canto da TV, enquanto a mãe frita os bifes do jantar e os grilos, lá fora, tocam a marcha da chegada do verão.
As vozes da TV contaram-me histórias épicas de vitórias e derrotas, talvez a primeira aprendizagem emocional sobre a porrada e o colo da vida, num tempo simples e leve, quando uma corrida do Chalana junto à linha nos oferecia mais verdade e beleza do que todas as igrejas, livros, museus e mulheres no planeta.
Escritor e editor de livros, viveu em Nova Iorque, Madrid e Rio de Janeiro, partilhando regularmente o seu olhar em crónicas na imprensa. O Caçador do Verão é o seu mais recente romance.
Lindo … Tal e qual o que se passou comigo. Guardo desse tempo a necessidade de ver o futebol como algo bonito, que se discutia mas que nos aproximava, que criava amigos para a vida fossem eles de que clube fossem. E sinceramente tenho pena daqueles que hoje se sentem “obrigados” a destilar ódio e raiva pelos Benfas ou pelos Sportens ou pelos Puertos… Eu nasci e cresci num tempo em que os amigos não tinham cor. E é com esses amigos de todas as cores que continuo a ter tardes inteiras de discussão e alegria, de teimosia e amizade, de vida completa afinal … Abraço