Guilherme Farinha

Em 1992, era seleccionador dos Sub-17 da Guiné-Bissau. Com essa selecção, ainda como Sub-16, fomos a Portugal para os primeiros Jogos dos Países de Língua Portuguesa e ganhámos à selecção portuguesa na final, no Estádio do Jamor, por 1-0, ao Carlos Queiroz, Nelo Vingada, Costa, etc., todo o staff dessa selecção que tinha sido campeã europeia.
A nossa equipa, de facto, estava bem preparada, já com dois anos de trabalho comigo, e na fase de qualificação para o Campeonato do Mundo de 1993 calhou-nos a Nigéria no grupo. Quando estávamos à espera que o nosso avião aterrasse em Lagos, na capital da Nigéria, mandaram-nos aterrar no Burquina Faso e ficámos lá uma noite. Esta é uma das muitas histórias que se passam em África e esta passou-se comigo e com a selecção dos Sub-17 da Guiné-Bissau. Não nos deixaram passar para o hotel e tivemos de dormir no chão do aeroporto. No dia seguinte não nos deixaram entrar no avião e tivemos de ir de autocarro para a Nigéria. A caminho de Lagos, fomos abordados por vários militares nigerianos. Eram homens perto do metro e 90, musculados, com metralhadoras, armados dos pés à cabeça, e mandavam-nos parar. Isto foi desde que entrámos na Nigéria até Lagos, que seria a uns 300 kms, mandavam-nos parar para aí de 20 em 20 kms e só queriam ver o branco. O único branco que lá estava era eu. Era o branco, era o branco, era o branco…
Quando chegámos a Lagos pensámos que nos iam levar para o hotel onde estava estabelecido ficar a selecção. Parámos numa vivenda enorme, linda e mandaram-me sair só a mim. Toda a comitiva da Guiné-Bissau ficou dentro do autocarro, só eu é que saí. Saí e, logo de seguida, uma senhora altíssima, com aquelas roupas com muitas cores, uma negra bonita, bem vestida e arranjada, com as unhas encarnadas grandes, acompanhada por uns 20 rapazes de cor, bem altos e encorpados, pediu-me o meu passaporte. Isto em Inglês.
– Dá-me o teu passaporte.
E eu não queria dar. Perguntei-lhe:
– Quem é a senhora?
– Sou a esposa do chefe da polícia de Lagos.
– Estou aqui como seleccionador da Guiné-Bissau e vamos jogar contra a Nigéria. Para que é que quer o meu passaporte?
E o tom começou a mudar.
– Dá-me o passaporte, foi o que eu te disse.
– Não, não lhe dou o meu passaporte.
Virei-lhe as costas para entrar no autocarro mas não me deixaram. Dois militares agarraram-me de um lado e de outro, quase que levantei os pés do chão, e puseram-me outra vez à frente da senhora.
– Já te disse que quero o teu passaporte.
Um director que vinha connosco, que viu que aquilo estava a azedar e talvez não fosse tão louco como eu, pediu-me o passaporte e entregou-o à senhora.
– Agora podes ir-te embora, mas não gostei que não me tivesses dado o passaporte como eu te ordenei.
Respondi que a senhora para mim não era nada, que a estava a respeitar, ao contrário dela a mim, que só estava de passagem pelo país dela. Nesse momento, levantei um pouco a voz por achar incorrecto o que me estavam a fazer e os rapazes apontaram-me as metralhadoras à cabeça e um deles disse:
– Se tornas a falar com esta senhora descarregamos-te as armas em cima, ficas sem cabeça. Ficas sem cabeça!
Se um deles tocasse com o dedo naquela merda não tenhas dúvidas nenhumas que eu ia com a cabeça com o carago, desaparecia ali. E a malta dentro do autocarro a ficar preocupada porque estavam a aperceber-se da situação, eu nem tanto. Entretanto, a tal senhora diz-me:
– O passaporte fica comigo. Tu vais fazer o jogo, vais perder o jogo e depois vais para a prisão. Ficas aqui.
Agora repara como é que vou para o hotel e para o Estádio Nacional da Nigéria, para um jogo ao qual assistiram 45 mil pessoas. E a Nigéria, tal como o Gana, como se sabe, é uma potência do futebol mundial em Sub-17 e Sub-20. Vê com que estado de espírito fui orientar a minha equipa. Fizemos o jogo, perdemos por 3-0. O segundo golo foi um offside de uns 10 metros, estávamos para fazer o 2-1 e não nos deixaram. Já antes não nos deixaram aquecer, puseram bastante areia no relvado, os nossos jogadores foram jogar com diarreia…
No segundo jogo, na Guiné-Bissau, eles foram uma semana para o Mali e foram comprar o árbitro, que era ganês. Mesmo assim, ganhámos 2-0, roubaram-nos dois penáltis, podíamos ter passado e éramos campeões do Mundo. Muito pouca gente sabe, mas podíamos ter sido campeões do Mundo! Mas foi a Nigéria.
Regressámos ao hotel e dali fomos para o aeroporto. Estávamos todos à espera que eu fosse preso, tal como a senhora tinha dito. O nosso avião era da TAGB, da Guiné-Bissau, conseguiu aterrar em Lagos mas esteve, tal como os meus jogadores, que nunca me abandonaram, horas e horas e horas à minha espera. A questão já metia governos, lá desbloquearam a situação e a nossa selecção de Sub-17 finalmente regressou à Guiné-Bissau. Esta é uma história da minha vida de treinador que não posso esquecer. Gostava que muitos treinadores portugueses de nome, que são muito conhecidos e que são todos os dias falados, tivessem esse tipo de experiências porque seria muito interessante, uma grande aprendizagem.
Tenho também uma história positiva, passada na Costa Rica. Era treinador da Liga Deportiva Alajuelense, na época 2000/2001, onde fui bicampeão nacional. Estou a falar do meu segundo campeonato. Tinha um jogador, o Pablo Izaguirre, argentino, que tinha sido meu jogador no Cerro Corá, do Paraguai, tinha ido para o Unión de Santa Fé, da Argentina, e quando comecei a ver a equipa vi que me fazia falta. Foi o jogador do ano durante cinco anos consecutivos, só isto. Era um excelente jogador.
Estávamos a jogar em casa contra o Saprissa, é o Sporting-Benfica da Costa Rica, e há um livre a nosso favor. Antes disso, bola no poste, bola na barra e a bola não entrava. O ambiente estava bastante quente, a adrenalina estava no máximo e eu vivo os jogos com muita intensidade porque vivo as coisas com muito amor e tenho de as fazer bem feitas. Para mim, o próximo treino e o próximo jogo são sempre os últimos, não sei se amanhã estarei cá.
Queria ganhar ao Saprissa, naturalmente, tínhamos o estádio completamente cheio. O Pablo Izaguirre marca o livre e faz um excelente golo. Veio direito ao banco para me abraçar, abracei o rapaz e vieram os jogadores todos para cima de mim, mais os meus assistentes, os meus suplentes… Uma grande confusão. Quando eles saem dos meus braços tenho à minha frente a fiscal de linha, que era uma mulher linda. Uma rapariga linda, não teria ainda 30 anos. Loirinha, muito linda. Ela estava mesmo à minha frente e eu não fui de modas: ponho as duas mãos nas bochechinhas dela e dou-lhe um beijo na testa. Epá, aquilo foi uma grande confusão, não é? Ficou a olhar para mim, não sabia como reagir, o árbitro veio perguntar-me o que me tinha dado para lhe beijar a auxiliar, os meus assistentes a olhar para mim, alguns jogadores a rirem-se, e eu disse: “vá, vamos continuar.”
O terminar desta história: ela estava para se casar e o noivo era muito ciumento, então o rapaz queria acertar contas comigo porque não tinha nada que beijar a noiva dele. Apareceu a minha foto a beijar a rapariga nos jornais, foi uma confusão durante um mês. Esta é uma história divertida que penso que não tem nada de mal porque não fiz nada de mal nem quis faltar ao respeito à rapariga. Mas era bonita, apresentou-se à minha frente e eu pensei “já que estás à minha frente também levas um beijo”. E beijei a rapariga.


Depois da experiência na Guiné-Bissau, treinou no Paraguai, Costa Rica (onde foi bicampeão), Guatemala e Irão, além de somar passagens por clubes nacionais como Casa Pia ou Ac. Viseu. Facebooktwitterlinkedinmail

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