Chamada a evocar uma ou mais histórias da sua carreira, a maioria dos jornalistas opta por destacar o dia em que obteve um “furo” glorioso, uma entrevista difícil ou conheceu uma personalidade irrequieta. Opto, ao invés, pelas narrativas menos nobres, pois aprendi mais com elas do que com os triunfos efémeros.
Trabalhei na fornalha insaciável do jornalismo desportivo durante sete anos, entre 1994 e 2000. Foi talvez a última fase gloriosa do duradouro braço-de-ferro entre os clubes e os jornais. Ainda se podia entrar nos balneários. Os jogadores estacionavam os bólides à beira do estádio e caminhavam entre os associados e jornalistas como meros mortais. Aos poucos, os clubes fecharam-se sobre si próprios. Construíram cidades desportivas e normalizaram o caos produzido pela convivência diária dos craques com duas ou três dezenas de jornalistas capazes de lhes extrair confidências indesejadas. Ficámos todos a perder.
Entrei certa vez pelo balneário da equipa profissional do Sporting. Entrevistei este e aquele, a eito. Ninguém se negou a comentar o jogo seguinte – contra o Real Madrid de Laudrup e Zamorano. Aproximava-se a hora do início do treino e a fita do gravador rolava, incansável, recolhendo as palavras dos homens que juravam não ter medo do Santiago Bernabéu. Tocaram-me no ombro, em jeito de aviso. Uma vez, duas vezes. Ignorei. Uma terceira pancada mais forte. Virei-me, zangado, com o atrevimento. Era Carlos Queiroz, o treinador. “Importa-se que eu dê o treino?” – perguntou. Ri-me, envergonhado. Atirei-lhe uma pergunta e o profe adiou mesmo o início do treino para explicar como iria ludibriar os merengues. Alguém imagina Vitória, Conceição ou Peseiro a repetir a mesma atitude?
Em 1996, enviaram-me a Manchester para duas reportagens: uma, impossível, prendia-se com Éric Cantona. Seria eu capaz de ouvir o futebolista que ninguém na Europa entrevistara depois de o francês pontapear um adepto do Crystal Palace? Naturalmente, falhei estrondosamente. Arranquei-lhe dois “oui” e um “non”. Noutros tempos, daria para encher uma página.
A outra linha de reportagem, mais razoável, consistia em captar a essência do que era a revolução promovida pelos novos bebés do United. Giggs, Scholes, Beckham, os irmãos Neville estavam então a despontar. Alan Hansen, em comentário hoje célebre, dissera na televisão inglesa que não se ganha nada só com miúdos, mas os miúdos ganharam mesmo. Peter Schmeichel ajudou-me a chegar a Alex Ferguson. Desafiei-o para uma entrevista. Com a simplicidade que só os grandes têm, aceitou. Gravador ligado, fita a rolar e…
Não percebia uma única palavra do que o escocês dizia. Parecia um sketch cómico à minha custa. De vez em quando, emergia, no árido sotaque de Glasgow, uma palavra familiar. Fiz perguntas desencadeadas, sem qualquer relação com o que Ferguson dizia pelo simples motivo de que era imperceptível. Tinha esperança de que, na redacção, alguém conseguisse retirar sentido da algaraviada a posteriori. E, de repente, um nome iluminou o rosto do meu interlocutor. “Iuzebiu? Como está ele? Tive uma honra suprema em participar no jogo de homenagem ao grande Iuzebiu em 1992.” Uma frase inteira com nexo. Foi o título, pois claro. Ainda hoje não juro que a minha transcrição tivesse mais pontos de contactos com a realidade.
Acusam os jornalistas desportivos de sofrerem de imaginação fértil e de clubismo doentio. Reconheço os defeitos. Um velho camarada dos jornais, hoje reciclado em grande profissional de televisão, costuma brincar dizendo que os directores de informação deveriam, na verdade, ser conhecidos como directores de intoxicação. Seja como for, há culpas repartidas na grande degradação dos padrões de informação. São precisos dois para dançar o tango, dizem os ingleses, e basta um não querer para travar a dança.
Em 1995, o secretário técnico do Sporting chamou-me à parte para desmentir a notícia de primeira página do meu jornal. Não era verdade que o seu clube estivesse prestes a contratar ao Belenenses Mauro Soares, um centrocampista brasileiro que não deixou rasto na memória colectiva. Teve o desplante de jurar pela saúde da mãe, pobre senhora. “Asseguro-lhe que não estamos interessados.” Pesei os prós e contras. Fiz mal. Publiquei a notícia mais embaraçosa da minha carreira: “Mauro Soares não jogará no Sporting.” Às 10 horas da manhã, Mauro Soares entrou pela Porta 10A e assinou mesmo contrato.
Caí na pior cilada que pode ocorrer a um jornalista – a fonte que mente deliberadamente porque tem outra agenda. No caso, uma guerra entre a direcção do clube e a do jornal que eu representava. Foi talvez a lição mais expressiva que aprendi em 25 anos de jornalismo e que transportei para o jornalismo científico, onde trabalho desde 2000. Confirmar, reconfirmar. Duvidar e voltar a duvidar. Negar a palavra a quem já nos mentiu. E só então publicar.
Quanto à minha fonte, da última vez que ouvi falar dele, estava a ser interrogado pela Polícia Judiciária. Hábitos velhos demoram a morrer…
Director da edição portuguesa da National Geographic, é autor do blogue Ecosfera e de cinco livros. O mais recente, Big Mal & Companhia, recupera a campanha de 1981/82 do Sporting de Malcolm Allison.