É fácil fazer pouco dos emigrantes por serem obcecados com tudo o que é português, desde o galo de Barcelos às tunas. É fácil achar esta saudade bacoca, sinónimo de falta de educação. Isto é, claro, até se passar vários anos fora de Portugal como emigrante. Aí chegamos à brilhante conclusão que nem doutorados escapam à doença que é a Selecção nacional para quem vive fora de Portugal. Passei seis anos nos EUA, a fazer o meu doutoramento e a ouvir que Portugal era uma província de Espanha. Seis anos a explicar a americanos que dizer que não foram a Portugal mas foram a Espanha é como eu dizer que eu não fui aos EUA mas fui ao Canadá. Seis anos a afirmar a quem quisesse ouvir que Portugal era o melhor país do mundo e possivelmente (aliás garantidamente) o berço da civilização.
Portanto, como não podia deixar de ser, tornei-me um doente pela Selecção nacional, com equipamento completo incluindo calções. Nunca ninguém compra os calções. Parava sempre para ver os jogos fosse a que hora fosse, até os amigáveis (como se existissem jogos amigáveis). Tanto assim, que a minha chefe já sabia que eu não aparecia nas reuniões de equipa que coincidissem com jogos, sob risco de estar a reunião inteira a olhar para o vídeo no meu computador e a fazer esgares de sofrimento.
E foi numa destas reuniões que a minha chefe me informou que eu a iria representar numa Gordon Conference, uma das conferências científicas de maior mérito mundial. Era uma honra enorme, claro que tinha de aceitar. Nada me poderia sequer fazer questionar a presença nesta conferência. Nada, excepto o Euro 2004 que estava a decorrer naquela data precisa e que poderia ficar em risco de não ver dois jogos. O primeiro jogo contra Espanha e o segundo, vim a descobrir mais tarde, contra a Inglaterra.
O jogo contra Espanha aconteceu enquanto estava no vôo, não podia fazer nada a não ser esperar. Quando aterrei, estava à espera da minha mala no carrossel quando o meu pai ligou. Ele ainda me fez sofrer antes de dizer que Portugal tinha ganho, eu festejei de tal forma enquanto pegava na mala que os americanos devem ter ficado a pensar que eu estava mesmo mesmo feliz por ver a minha mala no carrossel.
A conferência era em New Hampshire, no meio duma vila universitária com sete ou oito casas. Ficámos em alojamentos de estudantes, pequenos e com tetos baixos. No meu quarto havia uma zona em que o teto era tão baixo que só se podia lá estar deitado. Convenientemente, foi lá que puseram a cama. Os outros investigadores eram todos muito mais seniores que eu. Eu, do alto dos meus 25 anos, e não havia ninguém com menos de 45 anos, excepto um mexicano, um americano e uma estudante francesa que se enamorou por mim. Também tentei enamorar-me por ela, mas sem sucesso, por mais que tentasse era impossível ignorar o seu nariz. Mas os outros investigadores não só eram mais velhos como todos excelentes e reconhecidos cientistas que, ao que parece, levaram a mal o facto da minha chefe ter mandado um gaiato de 25 anos. Tanto assim, que quando foi a altura de me chamar a palco um certo e determinado investigador inglês, chamemos-lhe David Nichols (porque é o nome do biltre) fingiu esquecer-se de mim. Passei vergonha, claro, a subir a palco sem ser chamado, e senti-me um puto português longe de casa, num mundo muito grande.
Nessa tarde, durante o almoço, alistei o mexicano e um americano (deixei a francesa porque tinha receio que fizesse interferência nasal com a televisão). Perguntámos em todo o campus universitário se o jogo iria passar nalgum canal, nada. Literalmente começámos a andar na rua a bater a todas as casas que tivessem uma antena parabólica e a perguntar se podíamos ver o jogo. Depois de sermos tratados como testemunhas de jeová por cinco ou seis pessoas, há um tipo que quando deparado com o meu desespero, nos sentou na sua sala, pagou para descodificar o canal e nos deixou em casa sozinhos. Fica a nota para a Igreja Católica, em termos de canonizar, esta seria a minha recomendação.
Estou finalmente sentado a ver o princípio do jogo e, assim que há o apito inicial, o canal codifica-se. Não sei se estão familiarizados com um orgasmo, mas isto seria o oposto.
Em desespero corri para o meu quarto resignado a ouvir pela internet. Quando chego ao alojamento ainda nem cinco minutos de jogo tinham passado e o David Nichols diz-me com um sorriso canino que Portugal já está a perder 1-0. Foi a segunda vez naquele dia, que aquele inglês me fez sentir pequeno.
O resto já sabem, eu experienciei-o pela rádio. Sofremos até ao minuto 83, lembro-me do Jorge Perestrelo dizer que os deuses eram ingleses e que se houvesse justiça no mundo PORTUGAL estaria a ganhar. Nesse momento desisti, deitei-me na minha cama e olhei para o teto baixo. Por sorte, o Postiga não desistiu e quando marcou o golo do empate levantei-me tão depressa que simultaneamente bati com a cabeça e fiz um torcicolo. Os penáltis. O Ricardo que tirou as luvas depois de falar com o Eusébio. Eu acabei o jogo e estava emocionalmente drenado. Não tinha energia para me mexer. Desci do meu quarto, procurei aquele inglês só para chegar ao pé dele e humildemente dizer-lhe: “Good game”.
Se de dia está ligado à consultoria e às Ciências da Vida, à noite apresenta “Conta-me Tudo”, que nasceu em podcast e chegou ao Canal Q, sempre com histórias reais de pessoais especiais.