Vicente Lucas

Cheguei cá e venci. O meu irmão já cá estava. O Matateu era único. Até agora é único. Nem Eusébio, nem Cristiano Ronaldo, nem Messi, nem ninguém. Não apareceu outro jogador como ele.
Cheguei com 17 anos e não sabia o que era jogar na relva. O único campo relvado era o do Belenenses, nas Salésias. Tive de habituar-me também às chuteiras e às bolas de cautchú. Cabeceava uma bola e até ficava zonzo, não é como agora. Agora o Ronaldo marca um livre, um gajo põe a cabeça e está na mesma! E o Matateu, mesmo com a bola pesada pela chuva, chutava forte.
Posso contar a história do campeonato de 1954/55. Na primeira jornada marquei o golo da vitória do Belenenses contra o FC Porto. Andámos muito tempo no primeiro lugar, em cima do Benfica, do Sporting e do FC Porto. O FC Porto naquele tempo ficava no quarto lugar, a gente disputava os primeiros lugares com o Benfica e o Sporting. Perdemos esse campeonato na última jornada, quando empatámos 2-2 com o Sporting e terminámos com os mesmos pontos que o Benfica. Nesse jogo, a quatro minutos do fim, a bola bateu nas costas do Figueiredo e foi parar aos pés do Martins, que marcou. Estávamos a ganhar 2-1, quase a acabar o jogo. O meu irmão já tinha marcado mais um golo ao Carlos Gomes mas o árbitro anulou, disse que não passou a linha. Empatámos 2-2 nas Salésias e nesse ano o Benfica ganhou pela diferença de golos. Faltavam quatro minutos. O que é que são quatro minutos? Alguns sócios desmaiaram, houve muita emoção no fim. Se ganhasse esse campeonato, se calhar o Belenenses não estava como está hoje. Depois deu-se o 25 de Abril e isso tramou o Belenenses. Antes era um clube com muita força.
O comando do quartel onde estive era do Belenenses. Nem soube o que era a tropa. Eu e o Coluna íamos lá, entrávamos e era só tirar a licença e ir embora. A Selecção Militar era a Selecção Nacional: o Hernâni e o Carlos Duarte, dupla do FC Porto, o Rocha, da Académica, era só craques. Fiz muitos jogos pela Selecção Militar, estive uns dez anos na tropa. E ganhava dinheiro na tropa. Quando íamos jogar fora, o Santos Costa, que era o Ministro da Guerra, dava-nos dinheiro para a gente comprar qualquer coisa. Mas naquela altura o Belenenses pagava bem, como o Benfica ou como o Sporting. O FC Porto começou a subir com a chegada do Yustrich para treinador e do Jaburu, que era muito bom jogador. Agora, o Belenenses tinha grandes jogadores e era uma escola de jogadores, como o Godinho, o Peres, o Estêvão… E ganhava nas reservas, nos juniores, juvenis, tudo!
O Riera foi um dos melhores treinadores que tive, depois foi para o Benfica e para o FC Porto. Dividia o campo para treinar por sectores. E tive o Otto Glória. Já tinha nome. Saía das Salésias connosco, nós a correr e ele dentro do carro. E daqui para o Estoril a correr. É verdade! Tinha um Chevrolet Impala.
Uma vez, antes de jogarmos contra o Benfica, o Otto disse-nos:
– Se vocês ganharem, levo o meu Chevrolet cheio de jogadores ao Maxim.
Era uma boîte muito conhecida na altura.
– Arranjem as mulheres que quiserem que pago eu. Champanhe e tudo!
E fomos.
Lembro-me de outro jogo contra o Benfica, esse para a Taça de Portugal. Era o Benfica dos grandes craques. O treinador mandou-nos para casa, não fizemos estágio. E o Matateu disse-lhe que ia marcar. No intervalo desse jogo, estávamos a ganhar 1-0, o Matateu pediu uma cerveja ao treinador.
– Não. Se te dou uma cerveja morres.
– Dá-me cerveja para eu marcar.
E pedia já a chorar! Acabou por beber e na segunda parte o Matateu fez um golo impossível, da linha do golo! O Costa Pereira estava a fechar o ângulo mas entrou no buraco. Ganhámos 3-1. O Tonho, um brasileiro muito feio, marcou mais um.
E houve outro grande golo do Matateu ao Benfica, esse no campeonato, de canto directo. A bola descreveu um arco mas o árbitro anulou o golo, disse que a bola tinha feito um “ésse”. Diziam que a bola tinha ido ao Cristo-Rei e voltou. E fizemos um segundo jogo por causa disso. Mas não tínhamos medo do Benfica. O Iaúca imitava o Matateu. O que fazia o Matateu também ele queria fazer. Se o Matateu ia para os copos, o Iaúca também bebia. Andava com um cãozinho e discos era com ele. Comprava uma data de discos e punha a tocar no carro. Punha os discos na parte de trás do carro e queimavam-se com o sol, ficavam todos tortos! A parte de trás do carro dele era só discos e garrafas de vinho verde. Era bom jogador e foi para o Benfica.


Jogou 13 épocas com a Cruz de Cristo ao peito e é o maior símbolo vivo do Belenenses. Participou no Mundial de 1966 e a marcação imaculada que fez a Pelé ainda hoje é recordada. Facebooktwitterlinkedinmail

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4 comentários sobre “Vicente Lucas

  1. Comecei a ver o Belenenses exactamente na época em que Vicente veio para o clube.
    Em 24 de Abril de 1955 o Belenenses perde o campeonato porque o árbitro não viu um golo que faria 3-1 e acabaria com as dúvidas. O próprio guarda-redes de Sporting confessou o facto.
    Vicente foi um jogador finíssimo, parecia que jogava com pantufas. Quanto valeria hoje?

  2. Vicente Lucas, você conheceu o sr. Armando Lucas, que era administrador de província em Moçambique e grande adepto e sócio do Belenenses?

  3. Foi um jogador finissímo a jogar, naquele tempo o Belém era respeitado pelos adversários.
    Tinhamos excelentes jogadores com “amor à camisola”
    Tinhamos o “passáro azul” o lendário José Pereira e outos, igualmente muito bons

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