Valéria Carvalho

Boas recordações da minha vida estão ligadas ao futebol, mais especificamente aos campeonatos mundiais. Como brasileira, vivi sempre intensamente todas as Copas e cresci ouvindo diariamente os nomes de Pelé, Jairzinho, Tostão, Rivellino, Gérson, Clodoaldo, Piazza e Carlos Alberto Torres, time da Copa de 1970.
Na Copa do Mundo de 1994, grande final, o Brasil jogou contra a Itália. O jogo terminou empatado em 0 a 0 nos 90 minutos do tempo normal. Na prorrogação o Brasil conquistou o título, após ganhar a disputa por penaltis pelo placar de 3 a 2, e se tornou a primeira Selecção tetracampeã mundial de futebol.
Contava eu com 26 “aninhos”, recém-chegada a Lisboa… E aqui começa esta história, mais uma de tantas que vivi com minha grande amiga Maria Inês. Dizem que “amigo é família que a gente escolhe” e é bem verdade, pois esta amiga virou minha irmã.
Partilhámos um T1 em Campo de Ourique durante um ano e juntas protagonizámos inúmeras aventuras, algumas bem “surrealistas”.
Esta querida e corajosa amiga tem uma grande particularidade, é paraplégica de nascença, e foi a revolucionária em Lisboa em termos de abertura mental em relação ao comportamento das pessoas fisicamente especiais.
Por exemplo, ela foi das pioneiras a frequentar discotecas e outras casas nocturnas. Nunca me esquecerei de uma discussão entre ela e o porteiro de uma casa muito famosa na época, onde ele dizia que ela não podia entrar com a cadeira porque dava mau “aspecto” (isso foi antes do “desacordo ortográfico”), ao que ela respondeu: “Ok, eu ando com a cadeira. Mas eu posso deixá-la aqui fora se o senhor disser às pessoas para elas deixarem seus pés aqui fora também…” Resultado, depois de um grande tumulto, conseguimos entrar e nesta noite ela ainda resolveu ir dançar para cima das colunas com cadeira e tudo! Inesquecível… pronto esta é a minha querida Maria Inês.
No dia da tão esperada final, eu vim dos ensaios do teatro a correr, ela saiu do atelier de arquitectura a voar e nos encontrámos em casa.
Maria Inês vivia a minha euforia por solidariedade como se ela própria fosse brasileira. Fizemos “mega” produção: bandeiras e calcinhas verdes e amarelas penduradas nas janelas, “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso com Gal Costa a “esgoelar” na aparelhagem, dois litros de caipirinha e frango com farofa, arranjámos roupa, cabelo e maquilhagem, tudo em verde e amarelo… Estávamos “demais”! Ela levava, com orgulho, um colar de bananas feito por um grande estilista alfacinha… As duas lindas, jovens e bronzeadas, só pensávamos na festa da vitória no Bairro Alto.
Sofremos tanto naqueles 90 minutos, gritámos, berrámos, xingámos, blasfemámos, rezámos, implorámos a Deus, mas não adiantou, fomos mesmo a penaltis… Quando o juiz decretou o final do jogo, Maria Inês pulou da cadeira e atirou-se para o chão!! Eu corri para a janela e urrei a todos os pulmões: “BRASILLLL!” Entretanto meus irmãos ligaram do Brasil a chorar: era TETRAAAAA!!!!
Saímos loucas, literalmente, já com algumas caipirinhas pela goela e fomos para o Bairro Alto e eis que quando chegamos ao cimo do miradouro em São Pedro de Alcântara, ela gritou: “Valéria, sobe na parte de detrás da cadeira!” Eu perguntei: “como assim?” E ela respondeu: “Vamos descer pelo trilho do eléctrico, se prepara ‘brazuca’…” A euforia era tanta que eu subi e descemos as duas em cima da cadeira a rua toda até à Rua do Alecrim, a berrar: “BRASIL, BRASIL, BRASIL…” E eu só rezava para o frango com farofa não me sair pela goela afora…
Enfim, fomos filmadas pela RTP e aparecemos no Jornal Nacional!!! Na altura não havia Facebook, mas recebemos montes de telefonemas para a rede fixa, pois também ainda não haviam telemóveis. Bons tempos…
Coisas da juventude, onde vivemos sem filtros e sem medos, onde rimos muito e falamos alto, onde a diversão é sem culpa e as horas de sono não são fundamentais, mas sim amigos como a Maria Inês.
A Copa de 94, sem dúvida, ficará na minha memória como das melhores de sempre… E também de maior sofrimento, pois a vitória do Brasil veio após três erros italianos: uma defesa do goleiro Taffarel em chute de Massaro, e mais dois chutes para fora dos craques italianos Franco Baresi e Roberto Baggio. Márcio Santos havia errado também, não sendo necessário ao Brasil efectuar todas as cobranças a que tinha direito…


Actriz brasileira radicada em Portugal desde 1991, esteve em digressão com “Rui Veloso, em jeito de BOSSA”, gravou um CD com o mesmo nome e contracenou com o filho na peça “O sofá, a mamã e eu”. Facebooktwitterlinkedinmail

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