Rui Malheiro

O Mundial de 1982 não é a minha primeira memória relacionada com o futebol. Aprendi a ler e a escrever precocemente, e poucos dias depois de completar 5 anos, no início do outono de 1981, entrei para a escola primária.
Tenho memórias dispersas da temporada 1981/82, dominada internamente pelo Sporting de Big Mal, e daquele dérbi entre Leões e Águias, num final de tarde em Alvalade, com direito a uma raríssima transmissão televisiva narrada por Gabriel Alves, marcada pelo soco, numa altura em que a noite já caíra sobre o relvado, de um felino Manuel Galrinho Bento a um predador Manuel Fernandes. “Isto é que está mal! Como é que é? Isto não está bem num campo de futebol!”, vociferava Gabriel Alves. Ou então, da final da Taça de Portugal, com as imagens televisivas apenas a chegarem no Telejornal, em que o Sporting bateu de forma contundente o Sporting de Braga, treinado pelo mestre Quinito, que surgiu no Jamor trajado de fraque creme e de laço castanho, ou não fosse aquele dia o da grande festa do futebol.
O desfiar do novelo de memórias também me conduz ao coração. As primeiras incursões, pela mão do meu Tio, no Estádio de Avenida, o mítico pequeno caldeirão onde o Rio Ave, dos célebres Mourinhos de trabalho, realizava a época de ouro na I Divisão, com José Mário (Mourinho) no plantel e a jogar, nas tardes de quarta-feira, pelas reservas; e, sobretudo, o fim de tarde das segundas-feiras, após as aulas, em que o meu Avô me conduzia ao quiosque do senhor Altino para comprar a edição do então trissemanário A Bola, acabadinha de chegar. Eram tempos em que os jornais só chegavam a Vila do Conde ao final da tarde.
Tinha três anos no Euro 1980. Não tenho nenhuma memória, além da bola amarela, que me acompanhou durante grande parte da década de 1980, onde surgia carimbada a mascote da competição: o Pinocchio. O futebol na rua e no recreio da escola, aquele que até motivava castigos da Professora Cândida, que não gostava de nos ver suados, fez com que o boneco se fosse desvanecendo – até aquele longo nariz pintado com as cores da bandeira italiana – com as marcas da terra que foram tornando a redondinha cada vez mais castanha.
Por isso, o Mundial 1982 foi a minha primeira grande competição internacional de selecções. A caderneta de cromos representava o nosso primeiro contacto visual com a maior parte dos jogadores. Eram tempos em que as imagens de futebol internacional rareavam, o que nos levava a absorver avidamente toda a informação que a caderneta e os cromos nos disponibilizavam.
Foi também por essa altura que percebi que era raríssimo marcarmos presença naquele tipo de certame. O meu Tio e os meus Avós contaram-me a história dos Magriços, de Eusébio, daquele Mundial 1966, das famílias e amigos em redor de uma televisão minúscula, um bem tão precioso como escasso num País a preto e branco – percebi, depois. E, por falar em preto e branco, a cor que Abril nos trouxe, também chegou aos televisores (e não faltavam campanhas para os promover). Só que lá em casa, apesar da insistência, minha e do meu Tio, o meu Avô manteve-se fiel, por mais uns meses, a uma gigantesca televisão a preto e branco da Philips.
Foi através dela que assisti ao dia de abertura do Mundial. Mais do que o jogo inaugural, entre a Argentina, campeã do Mundo, e a Bélgica, naquela que terá sido a primeira vez que vi Diego Armando Maradona jogar, guardo a cerimónia de abertura, transmitida em directo pela RTP 1, após o “Passeio dos Alegres” de Júlio Isidro. Pelo Naranjito, a mascote que carreguei durante anos numa t-shirt azul com o dístico “España 1982”, e por aquele inolvidável momento em que um menino caminha em direção ao centro do relvado de Camp Nou com uma bola debaixo dos braços. Uma bola que se abre para assistirmos ao voo trepidante de uma pomba como um sinal veemente de paz, o que redundou numa imagem inesquecível, intemporal, que ainda hoje conservo como o momento mais especial deste tipo de cerimónia. Mesmo que me entristeça não saber o nome daquele menino que todos os garotos gostavam de ter sido, e que se mantém, hoje em dia na casa dos 40, no anonimato.
Segunda-feira, 14 de junho de 1982. Um dia depois da cerimónia de abertura, eis que surge, entre o Telejornal, antecipado para pouco depois das 19 horas, e a telenovela Vila Faia, o jogo que ninguém queria perder. De um lado o Brasil, em que Zico, simpático até pelo nome, e Sócrates, médico-futebolista-com-nome-de-filósofo, assumiam o papel de principais estrelas. Do outro lado, a União Soviética, repleta de jogadores com nomes impronunciáveis, se exceptuarmos Bal e Baltacha, ou a estrela Oleg Blokhin.
A paixão pelo jogo já tinha nascido, mas, a partir daquela noite, nada respirou como dantes. A bola foi tratada, na relva do Ramón Sánchez Pizjuán, em Sevilha, com a delicadeza de quem procura descrever o amor num poema. Percebeu-se, logo desde o início da partida, que Rinat Dassaev, o ágil e elástico guardião soviético, estava disposto a resistir ao samba. O tom era dado por um soberbo Zico, enquanto Sócrates, preso na zona central do meio-campo, face à ausência por castigo de Toninho Cerezo, surgia mais tímido. Já Rinat, o grande, continuava a fazer gala dos seus magníficos reflexos, e Blokhin, o veloz canhoto, começava a criar enormes dores de cabeça a Leandro, o lateral-direito que não surgia na caderneta de cromos, e a um abúlico Dirceu, opção inicial para a ala-direita. Seria Blokhin, numa incursão pelo corredor central, a abrir o caminho para o golo inaugural, repartido por Bal, que arriscou um remate pouco potente a longa distância, e Valdir Peres, o goleirão brasileiro que deu o primeiro dos seus frangos intemporais.
Depois, na segunda parte, o futebol poema ganhou outra dimensão. Sócrates passou a jogar mais adiantado, aproximando-se de Zico, enquanto o eléctrico Paulo Isidoro rendeu o desinspirado Dirceu à direita. O futebol enleante e combinativo, muitas vezes definido a um-dois toques, tomou de assalto a muralha soviética, mas Dassaev, sempre ele, prodigioso entre postes, e Serginho Chulapa, trapalhão no momento da definição, iam adiando o óbvio. Foi à lei da bomba que o futebol arte produziu uma sensacional reviravolta. Primeiro, pelo doutor Sócrates, num disparo contundente com o pé direito, após ter sentado dois adversários. Depois, pelo persistente Éder, num sensacional pontapé com a sua canhota de ouro, após uma simulação do assombroso Paulo Roberto Falcão, o verdadeiro médio todo-o-terreno.
Não me lembro se vi o episódio da Vila Faia após o jogo. Mas recordo-me que, no dia seguinte, antes do Sítio do Picapau Amarelo, da encantadora Narizinho, da erudita Dona Benta, da imprescindível Tia Nastácia, da boneca de trapos Emília, do sábio Visconde de Sabugosa, do laborioso Tio Barnabé, do desconcertante Zé Carneiro, e do ardiloso Saci Pererê, que precedia a transmissão, na RTP 2, do entusiasmante Escócia – Nova Zelândia, peguei na bola amarela e fui para o sótão testar toques de calcanhar, simulações e remates de longa distância.
No futebol, como no amor, o importante é nunca ter medo de disparar.


Analista de futebol e scout, entre várias colaborações destaca-se actualmente como colunista do Record e presença semanal no programa Grande Área, da RTP3.

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3 comentários sobre “Rui Malheiro

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