Eu sou de Benfica desde pequenino. Eu sei, sei que a maior parte das pessoas que têm um clube nunca mudaram. É quase tabu a mudança de clube. Até há aquela frase que diz que uma pessoa pode mudar de uma porradona de coisas mas que mudar de clube está completamente fora de questão. Eu não tenho certeza em relação a esse assunto mas para mim sempre fez sentido ser do Benfica. Como a maior parte das pessoas, o meu benfiquismo acaba por ter origem na tradição familiar. Já o meu irmão, por exemplo, foi convencido por um colega do meu pai a mudar para o Sporting. Eu não vejo nada de mal nisso, sinceramente. Ele era pequeno e agora percebe muito melhor do que eu o que é ganhar muito poucas vezes. Sim, é uma piada fácil.
Voltando ao assunto, continuei a tradição familiar e desde pequeno fui a jogos de futebol, só que a muito poucos. Todos os meus amigos que vivem o futebol dizem que eu não sou um verdadeiro aficionado da coisa. Eu sou uma pessoa interessada que vai ver um jogo ou outro quando arranja bilhetes de borla, acho que nem nunca gastei dinheiro para ir ver um jogo do Benfica. Aliás, só para terem a noção: De todos os jogos de futebol que vi em estádios, nunca vi o Benfica a perder. Nunca. Provavelmente estou a abençoar o clube, mas não quero descobrir se estou errado. Nem vi assim tantos jogos, posso não ser o amuleto precioso que, no máximo, uma vez por época tem salvo o clube de perder.
Apesar disso, tenho curiosidade e vejo de vez em quando um jogo ou outro. Imaginem, se o Benfica estiver a dar na televisão do restaurante onde estou a comer, fico a ver. Mesmo sem o hábito de ver os jogos, nesses casos, serei, quase de certeza, a pessoa que mais está a sofrer naquela sala. Se calhar isso é uma boa justificação para não ver todos os jogos como provavelmente vocês fazem, mas é que eu ainda não tomei gosto ao sofrimento.
Mesmo assim houve um ano que ficou marcado pela minha grande adesão ao futebol. Um ano em que – juro! – vi quase todos os jogos. Nesse ano interessei-me pela coisa. Não sei porquê mas aconteceu. Ainda por cima estou a falar do ano em que se deve ter praticado do pior futebol de todos os tempos em Portugal. Um ano em que os clubes, e sobretudo os 3 primeiros, jogaram de forma assombrosa. Isso ou os restantes jogaram mesmo muito bem. Não sei, não vejo assim tanto futebol para conseguir reconhecer esses pormenores. Caso não sigam assim tanto futebol, ou se não perceberam logo, o ano que eu vi mais jogos do Benfica foi o ano de 2004/2005. Ano em que Giuseppe “A velha raposa” Trapattoni foi treinador do Benfica. Foi sorte ter coincidido com um ano em que fomos campeões. Lá estou armado em amuleto.
Lembro-me daquela muralha da equipa benfiquista que se segurava na linha lateral como se fosse uma corrente, até se desmoronar com o som do apito final. Vi pela televisão, mas vivi como se tivesse lá, braços atados com dois gajos todos transpirados, até que finalmente soou a porcaria do apito final que tanto tardou a chegar. Campeões… finalmente.
Avisei que ía. Cada um viu em sua casa e debandámos daquele subúrbio de linha de Azambuja por uma fila de imensa buzinada, um manto vermelho que entupia a 2ª circular. Éramos 3. Eu, o meu primo Tiago e o nosso amigo Venâncio, que encontrou-se connosco em Lisboa. Deixámos o carro perto de uma estação de metro. Naquele ano ainda não se celebrava no Marquês de Pombal, ainda era no Estádio da Luz que os sorrisos iluminavam ao som de gritos de vitória.
O estádio estava com lotação esgotada para ver os heróis da noite. Ainda tivemos de esperar observando umas actuações: versões playback dos Anjos, Peste & Sida e Da Weasel. Quando soaram as palavras “Olá nina, quero tratar de ti” toda a gente estava em pé, entoando-as como se fosse uma espécie de hino nacional. Menos nós os 3, lembro-me perfeitamente, sentados e amuados porque éramos musicalmente desinteressados de tudo aquilo. Muitos devem descrever esse momento como arrepiante mas, naquele ano, só o achámos embaraçador – entretanto já fiz as pazes com a música, só para que conste.
As actuações foram acontecendo e a festa culminando no grande momento, a chegada da equipa. Os jogadores chegavam um a um, recebidos em apoteose e, se bem me recordo, assim que finalmente estava toda a equipa aos saltos, uma pequena multidão começou a invadir o relvado. A festa descambou e nós os 3, no meio daquela euforia toda começamos a pensar: “O que fazemos?”. A adrenalina subiu-nos à cabeça e debatíamos a possibilidade de aderir a este movimento que se tinha formado. Foi um minuto ou dois mas pareceu-me muito mais. Estávamos na prancha, devíamos saltar? Pois, não saltámos. Ficou-se pela ideia. Cedo a multidão que preenchia as bancadas começou a apupar toda a gente que tinha invadido o terreno. Fomos hipócritas. Sim, seguimos o exemplo e, embora que com tom sarcástico, começámos a apupar também. “Buuuuu, fazer uma coisa destas? Que coisa selvagem”. Nem sei de quem é a citação mas já ouvi dizer: “Nada de bom acontece depois das 2 da manhã”. Eram umas 4, por isso já era de esperar. A festa acabou ali. Viemos para casa.
O regresso foi a pé porque o metro já estava encerrado. Caminhámos pela 2ª circular, pareceu-nos acertado. Parecia hora de ponta, estava o trânsito parado. Enquanto caminhávamos alguém gritou de um carro. Pareceu-nos que tivessem chamado pelo meu nome. “Pedro Paulos, é o Pedro Paulos”, com um tom de troça de quem está sentado enquanto os burros vão a caminhar para casa. Íamos os 3 lado a lado, e parámos para ver quem era. Eles permaneceram imóveis. Nós também. Olhos nos olhos, não reconhecemos ninguém. O silêncio intensificava-se até que – PUMBA – o carro deles bateu no da frente. “Karma is a bitch”, devem ter pensado. Coitado do dono do carro da frente, de mãos na cabeça, completamente frustrado. O nosso sentimento da altura deve ser muito semelhante ao de um benfiquista que chegar ao trabalho depois de o Benfica ser campeão, com os colegas do Sporting ou do Porto em silêncio.
Há, pelo menos, 3 tipos de fãs de futebol: Os primeiros são aqueles que vêm só os jogos do seu clube e da selecção. Há aqueles que vêm qualquer jogo de futebol, até se for da última liga de um país que ninguém sabe que existe lá um campeonato. Vêem este desporto como uma forma de entretenimento e não apenas como uma paixão que é expressa aos berros num estádio, ao som de uma rádio ou frente a uma televisão. Depois há aqueles como eu, que vêem a coisa quando calha. Podemos ver futebol como quem vê um amigo que emigrou, mas não pensem que gostamos menos dele por causa disso. É amor na mesma.
Faz quinzenalmente o podcast Brandos Costumes, co-apresenta com Fernando Alvim e Nuno Dias o Obrigado, Internet!, agora também na Antena 3, além de escrever para a Vice Magazine e Observador.