Nuno Madureira

Não abundam os registos, mas o auge da minha carreira de peladeiro aconteceu em meados da década de 90. Nesse tempo, eu integrava uma lendária ala esquerda da equipa do jornal «A Bola» que, se a memória não me falha – o que é uma forte possibilidade, admito – permaneceu invicta durante 29 partidas consecutivas. Tantas como a mágica Hungria de 1954, mas com um futebol muito mais evoluído. E, principalmente, marcando mais golos – isto se a memória não me atraiçoar, o que está longe de ser garantido.
O que me traz aqui, porém, não são os míticos placares de 7-1, 9-2 e, talvez, um ou outro 16-0, com que puníamos a tenaz oposição dos nossos adversários. Nem sequer o meu quinhão de golos memoráveis de canhota, capazes de arrancar aplausos aos dois privilegiados que, em média, nos viam em acção nos palcos sagrados de Pina Manique, do Fofó, do Restelo (campo de treinos) ou da Tapadinha.
O que eu quero mesmo contar-vos – e disso há registos, em foto e vídeo, que não me deixam ficar mal – é como, nesse período áureo da carreira, desfrutei do raro privilégio de ter as minhas chuteiras abençoadas por um sopro divino, não uma, mas duas vezes em menos de um ano.
A primeira aconteceu quando, jovem repórter imberbe, cumpri um dos sonhos de infância – acompanhar Chico Buarque na sua digressão futebolístico-musical (a ordem dos factores não é arbitrária) por Lisboa, Porto e Aveiro. Rapidamente recrutado para o não menos lendário Polytheama, no primeiro dos muitos jogos que a produção dos concertos agendou reforcei o meu estatuto na equipa por uma singular coincidência: além de levar sempre dois pares de chuteiras no meu saco, calçava o mesmo número de Chico.
Dado o meu bom rendimento e, não menos importante, a rápida adaptação da bota ao pé do artista, fiquei assim, nessa memorável tournée, com um papel duplamente fundamental: fornecia passes e cruzamentos milimétricos mas, principalmente, as chuteiras para o Chico, capitão de equipa e ponta-de-lança de recursos inesgotáveis – apesar de, como ele próprio dizia, os concertos nas vésperas dos jogos lhe desviarem o foco do essencial.
Só isto já teria sido pretexto para guardar aquelas chuteiras muito para lá do seu prazo de validade. Mas quis o destino que um ano mais tarde, nos arredores de Paris – no estádio Issy-les-Molineaux, mais precisamente – a equipa de «A Bola», reforçada por um Eusébio cinquentão e um quarentão Humberto Coelho, se preparasse para defrontar o L’Equipe, que tinha convocado Platini e Rocheteau, além do árbitro Joël Quiniou. E aconteceu que Eusébio, vindo directamente de uma visita a uma casa do Benfica, nos Estados Unidos, não tinha chuteiras com ele – foi novamente do meu saco que saíram as botas usadas nessa noite pelo King.
Resumindo, até pode ter havido um ou outro pé esquerdo melhor que o meu a passar pelos relvados portugueses – mas desafio qualquer um a apresentar um melhor currículo de emprestador de botas. E é escusado dizer que, depois disso, mais ninguém teve ou terá autorização para calçar aquelas chuteiras, as chuteiras dos génios. Com uma excepção, que me faz, vinte anos passados, continuar a andar com elas no saco. Diego Armando, estas linhas são para ti: no dia em que vieres a Portugal para uma peladinha e não tiveres trazido calçado, já sabes a que porta bater.


Co-fundador do site MaisFutebol, em 2000, assumiu o cargo de director em Janeiro de 2015, função que desempenhou até Agosto de 2016. Anteriormente tinha passado nove anos no jornal A Bola.

Esta é uma das 20 histórias inéditas, num total de 100 presentes no livro “Relato – Histórias de Futebol”, que pode ser adquirido em todas as boas livrarias ou encomendado aqui. Facebooktwitterlinkedinmail

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