Manuel Alegre

Os primeiros jogos que vi foram na minha terra, do Recreio de Águeda, mas o primeiro jogo importante que vi foi um Académica-Benfica, ainda no Campo de Santa Cruz, nos anos 40, em que houve uma cena da qual nunca mais me esqueci. A certa altura, houve uma agressão recíproca do Faustino, Coronel Faustino, que era o capitão da Académica, e do Teixeira, o marreco, que era do Benfica: o marreco mordeu a barriga do Faustino e o Faustino partiu-lhe uma perna! Foram expulsos, então o Faustino veio até à bancada dos sócios da Académica levantar a camisola para mostrar as marcas da dentada do Teixeira. Nunca mais me esqueci. Era miúdo, ficou gravado para sempre. Fiquei aterrorizado com aquilo. É a primeira imagem que guardo do primeiro Académica-Benfica que vi. Ganhou o Benfica por 4-1, foi em 1944. E acabou tudo à pancada entre os adeptos.
Também me recordo do primeiro Benfica-Académica que fui ver. Nessa altura era da Académica. Os clubes estavam de relações cortadas e o Benfica não recebeu a Académica no Estádio da Luz. O jogo foi no Estádio Nacional e também não acabou bem. Naquela altura, Académica e Benfica tinham um recíproco ódio de estimação. Hoje são clubes amigos, mas foi assim durante muito tempo.
Fiz o primeiro ano do liceu em Lisboa, no Liceu Passos Manuel, tinha 11 anos. Não era do Sporting, mas ia frequentemente ao Estádio de Alvalade para ver jogar os Cinco Violinos: Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano. Lembro-me perfeitamente de os ver. O Travassos era um jogador extraordinário. Hoje não se fala dele, mas acho que foi um dos melhores jogadores portugueses de todos os tempos. E o Hernâni, da minha terra, que jogou no Porto e segundo o Pedroto era o melhor jogador português. Lembro-me de ser pequeno e ver o Hernâni fazer coisas mirabolantes a jogar no Recreio de Águeda e depois no Porto.
Há jogadores que marcaram-me para sempre: o Francisco Ferreira, capitão do Benfica, parava a bola com o peito e levava o Benfica para a frente, o Rogério, que era um jogador com uma habilidade extraordinária, outro grande jogador, o Bentes, da Académica, o Rato Atómico, o Araújo, do Porto, jogadores que se aparecessem hoje duravam pouco tempo nos respectivos clubes…
Lembro-me da repercussão que teve no país a primeira vitória de Portugal sobre a Espanha, por 4-1, com dois golos do Araújo e dois golos do Travassos. Foi uma alegria incrível! Naquele tempo havia poucos jogos internacionais. Normalmente eram com a Espanha, de vez em quando Portugal lá jogava com a França e nas grandes frustrações da minha infância estão as derrotas de Portugal: os 10-0 com a Inglaterra e os 9-1 com a Áustria. Mas uma das grandes alegrias foi essa vitória de Portugal sobre a Espanha por 4-1, no Estádio Nacional.
Lembro-me do primeiro jogo internacional que vi, um Portugal-França, no Estádio Nacional, em que Portugal perdeu por 4-2 e lembro-me do Peyroteo marcar o primeiro golo e o Ben M’Barek, que era um marroquino que jogava pela França, também marcar. Também assisti à primeira vitória de Portugal sobre Inglaterra: 3-1 nas Antas, dois golos do Águas e um do Matateu. Jogava o Stanley Matthews pela seleção inglesa. Foi também uma alegria imensa, terminou com invasão de campo. Invasão pacífica, claro.
A minha ligação com o Benfica vem sobretudo quando estive exilado por razões políticas. Foi quando percebi o que o Benfica significava para a grande massa dos emigrantes e que era o elo de ligação entre os emigrantes e o país. Depois, quando estive na Argélia, vi que havia muitos angolanos e guineenses que lutavam pela independência dos respectivos países e eram adeptos do Benfica. Percebi a dimensão transnacional do Benfica: o elo de ligação entre as comunidades portuguesas e o elo de ligação com todo o mundo lusófono. E depois as vitórias do Benfica, o Benfica campeão europeu, o Eusébio, a grande equipa do Benfica e a dimensão, não só futebolística e desportiva, como social e cultural. Como traço de união.
Lá fora, dizer Eusébio era a mesma coisa que dizer Portugal. Benfica e Eusébio. É um símbolo do país, da lusofonia e do Benfica, mas ninguém teve o sucesso internacional do Ronaldo. Não estou a dizer qual é o melhor, mas ninguém teve tanto sucesso. Tudo isso contribuiu para passar passar a ser do Benfica. Passei a ter os dois amores, Académica e Benfica. Mas a Académica de hoje não é a Académica do meu tempo, em que era a expressão da academia e a maior parte dos jogadores eram estudantes. Quando eles entravam em campo entrávamos todos, eles representavam-nos. Eu sou sempre dessa Académica, de uma Académica que já não existe. Nos anos 60, a própria equipa da Académica participou na luta estudantil. Além de jogadores da Académica, o Mário Wilson, o Torres, o Toni, eram nossos colegas e nossos amigos. Isso é inesquecível. Hoje sou sócio do Benfica e assumo inteiramente o meu benfiquismo. E também sou sócio da Académica, nunca deixarei de ser.


Escritor, poeta, político. Uma vida também ligada ao desporto: foi campeão nacional de natação, o pai foi futebolista da Académica e o avô Mário Duarte deu nome ao estádio do Beira-Mar. Facebooktwitterlinkedinmail

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Um comentário sobre “Manuel Alegre

  1. Tenho uma fotografia do Est. Mario Duarte em um jogo com o Beira Mar. Estou certo?

    O Manuel Alegre tem uma historia futebolística bem idêntica à minha no setor de recordações. Carro de meu Pai, tinha uma águia prateada no para choques da frente no ano de 39, Depois que fui para Coimbra e joguei no Juniores virei a casaca mas até hoje sou Academica e Benfiquista .
    Tiberio, Zé Maria e Cesar Machado . Portugal, Faustino e Otaviano. Manuel da Costa,Dr. Alb. Gomes, Arnaldo Carneiro, Nini e Pimenta.. 1ª Taça de Portugal.
    Abs ao Manuel Alegre.
    Estou muito feliz com este relato que acabo de ler e que encontreo após a mensagem que havia enviado.

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