Duarte Gomes

Os árbitros não têm adeptos. É normal. Os protagonistas, os fazedores de magia, as verdadeiras estrelas do jogo são os jogadores e os clubes que em cada momento representam. É o seu talento, a sua imprevisibilidade, técnica e a sua força que devem ser premiados por adeptos sequiosos de bom futebol e vitórias. E bem. Mas houve um fim-de-semana em que eu, ainda árbitro, tive o meu momento de protagonismo. Não para o exterior, mas para mim. Tive o prazer de ter nas bancadas um apoiante muito especial, ou melhor… uma apoiante muito especial.
Ela tinha apenas quinze quilos na altura mas toneladas de personalidade. Pouco menos de um metro mas quilómetros de carácter naquele corpinho de três anos de idade. Estava equipada a rigor, com cartão amarelo numa mão, vermelho noutra e apito na boca. Tamanho de equipamentos M num corpinho XXS. A camisola que vestia – uma das minhas – fazia de fato completo. E que bem que lhe ficava o vestido…
Era a estreia dela num estádio, a primeira vez que ia ver o papá ao vivo. Lembro-me bem. Estava nervoso, muito nervoso. Bem mais nervoso do que estaria se fosse arbitrar o mais importante e dramático dos derbys, perante um estádio a derramar por fora. Ouvi a sua garganta ao longe, bem ao longe, no túnel de acesso ao relvado, quando ainda nem tinha entrado em campo. Gritava com a inocência da idade… “papá…papá”… e fazia-se ouvir mais alto que a pequena multidão que ali estava. Naquele momento, aliás, ela foi a minha única multidão. Senti um orgulho sem paralelo ao vê-la ali, ao longe, pequenina mas grande. Tão grande. E graças a ela, senti-me testado. Testado a sério. Nunca a minha capacidade de abstracção, o meu profissionalismo e a minha concentração tinham sido colocadas à prova assim. Até ao limite. Mas foram. E movido por ela, superei aquela prova. Sei que sim. Sinto que sim. Até nisso ela é única. Fez sobressair o melhor de mim. Tal como hoje ainda faz. A toda a hora.
Naquele dia, naquele estádio, naquele jogo… tudo correu bem. Aliás, nunca poderia correr mal. Daqui a uns anos, quando ela for maior, vou contar-lhe a história do dia em que, pela primeira vez, foi ver um jogo que o papá arbitrou. Se nesse momento ela sentir o orgulho que eu senti dela… estamos conversados.


Ex-árbitro internacional, estreou-se na I Divisão em 1998 e terminou a carreira esta época, após 18 anos ao mais alto nível. É comentador da SIC, cronista do jornal O Jogo e empresário. Facebooktwitterlinkedinmail

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7 comentários sobre “Duarte Gomes

  1. Como eu o compreendo! Enquanto árbitro já tive na bancada pai, mãe (não gosta muito), sobrinhos, cunhado, amigos, mas o dia em que a minha mulher levou o meu filho a ver o pai a arbitrar senti um orgulho enorme. Vê-lo na bancada a acenar e a chamar “papá, papá!” encheu-me o coração e a alma. Quem não é pai (na verdadeira acepção da palavra) não percebe o que isso representa.

  2. Sei o que foi sentindo, pois o meu filho quando me vai ver a apitar é o meu apoio e único público. Mas não são precisos muitos adeptos mas sim aqueles que dizem é fazem o que na inocência da idade, não o fazem forçadamente. Pois são simplesmente crianças. Sim porque nós árbitros. Também somos homens

  3. Boa história de um profissional que nunca envergonhou a categoria profissional a que pertence. Felicidades nesta nova vida.

  4. Emocionante!!!!!! Um relato fantástico do sentimento que um pai tem por um filho!!!! Sou adepto do Soorting, e sinceramente não sou fanático, no entanto, acredito que no calor de algum momento tenha dito algo ao Sr. Duarte Gomes….quero no entanto deixar claro que este senhor foi sem dúvida um dis grandes árbitros portugueses e que, este relato, mostra tam a sua grandeza enquanto ser humano, sim, pois um Grande Ser Humano, como este senhor é sabe qual o seu papel mais importante na vida: Pai!!!!!! Gostei muito!!!! Um abraço de outro Pai. Tito Cunha

    • Nenhum sportinguista acha este individuo um dos grandes árbitros portugueses. Sempre foi um agarrado do sistema… Comeu disso a carreira toda!

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