António-Pedro Vasconcelos

O primeiro jogo de futebol que vi na minha vida ficou-me gravado como uma das memórias mais vivas da minha infância. Eu ainda não tinha feito oito anos e vivia em Coimbra, para onde o meu pai, juiz, tinha sido destacado um ano antes. Um amigo dele, um tipo mundano que tinha o famoso Citroën do tempo da guerra, trouxe-nos a Lisboa para ver o Portugal-Espanha, que a “equipa das quinas”, como se dizia na altura, acabaria por ganhar por 4-1. Era a época do famoso quinteto atacante do Sporting, que o não menos famoso jornalista Tavares da Silva (e na altura também seleccionador nacional) baptizara de “Os cinco violinos”, e o país inteiro esperava que Portugal ganhasse ao grande rival, a poderosa equipa espanhola, num duelo ibérico onde se jogavam, mais do que um simples jogo, ressentimentos históricos por saldar.
O jogo foi, como não podia deixar de ser, no recente Estádio Nacional, uma obra do Regime ao estilo de Mussolini, e a criança que eu era, que nascera em Leiria e vivia apenas há um ano em Coimbra, ficou boquiaberta com o espectáculo grandioso de 68 mil espectadores em uníssono a vibrar com a nossa Selecção.
Lembro-me que uma avioneta sobrevoou o Jamor lançando uns panfletos, que não me lembro o que diziam, mas que, para a criança que eu era, faziam lembrar confetis emoldurando o estádio. E lembro-me de ver toda a gente, de pé, a aplaudir um homenzinho com o braço ao peito, que vim a saber que era Azevedo, o mítico guarda-redes do Sporting, que não pôde jogar nessa tarde porque, uns dias antes, num jogo heróico contra o rival Benfica, tinha sofrido uma grave lesão no braço esquerdo, e que, como não havia substituições, tinha acabado o jogo a defender a baliza, defendendo tudo o que havia para defender, com uma única mão, ajudando assim o clube a vencer o rival por 3-1.
Quem o substituiu foi Capela, uma das “torres do Restelo” (os outros eram Vasco e Feliciano), que viria a ser um dos pilares da Briosa uns anos depois, e que eu vi muitas vezes jogar no estádio Municipal de Coimbra, porque o meu pai me fez sócio muito novo da Académica, que durante anos, sob a batuta do grande Cândido de Oliveira, me deliciava a ver jogar.
Não sei porquê, dois dos cinco violinos (Vasques, o “galgo de raça”, como o baptizara Tavares da Silva, e o pequeno e endiabrado Albano) não jogaram e foram substituídos pelo grande interior direito Araújo, na altura o Maradona do Futebol Clube do Porto, e Rogério, o “Pipi”, o elegante extremo-esquerdo do Benfica, que fintava, centrava e marcava golos como poucos no seu tempo.
O jogo começou mal, com um balde água fria, que ia gelando o entusiasmo patriótico dos 68 mil espectadores: Rafael Iriondo, logo no primeiro minuto, marcou para a Espanha, fazendo temer o pior. Mas, ainda na primeira parte, Araújo fez esquecer o “galgo de raça” e marcou dois golos, e Travassos, o futuro “Zé da Europa”, na segunda-parte, fechou o resultado, com outros dois.
Uns dias depois, Portugal era humilhado pela mítica Selecção inglesa no Jamor, onde Stanley Matthews, o mágico extremo da equipa de Sua Majestade, deixou de cabeça perdida a nossa defesa, que acabou por sofrer 10 golos sem resposta, e custou a cabeça ao seleccionador.
Três anos depois, o nosso amigo foi a Madrid, no seu Citroën, assistir à réplica do jogo do Jamor, que “nuestros hermanos” esperavam que fosse uma vingança tão categórica e humilhante como a que os ingleses nos tinham infringido. Nos cafés e nas ruas, segundo o nosso amigo, não se falava noutra coisa: os espanhóis prometiam ganhar, também eles, por “diez a zero”!
Por isso, quando, na manhã do jogo, o nosso amigo foi acordado pelo groom que, do outro lado da porta, lhe anunciava “Desayuno”, não aguentou mais: levantou-se, furioso, com um sapato na mão, decidido a vingar a afronta, quando, ao abrir a porta, se deparou com um jovem atónito que lhe trazia o pequeno-almoço numa bandeja, o “desayuno” que ele confundiu com uma provocação! O resultado não foi 10 a 1, como ele temeu, mas um simples 5-1. Um alívio!


Responsável por alguns dos principais sucessos do cinema português, casos de Os gatos não têm vertigens, O Lugar do Morto, Jaime ou Call Girl, tem em Amor Impossível o seu último filme realizado.

Esta é uma das 20 histórias inéditas, num total de 100 presentes no livro “Relato – Histórias de Futebol”, que pode ser adquirido em todas as boas livrarias ou encomendado aqui. Facebooktwitterlinkedinmail

Become a patron at Patreon!

Deixe um comentário